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segunda-feira, 13 de junho de 2011

CONTO



TATUAGENS

Eu gosto de tatuagens. Há pessoas que ficam muito bem com elas. Coisa da humanidade, das antiqüíssimas da humanidade; coisa séria, religiosa. Um ritual. A tatuagem nos remete aos nossos indeléveis primórdios. Gosto disso.

Após um dia do congresso em Florianópolis, fui convidado a ir para a casa da amiga de uma garota que conheci na palestra de um grande diretor de teatro. A dona da casa foi se arrumar, pois sairíamos para um bar da antiga Desterro, acho que Boteco da Ilha.

Não sei como começou o assunto-título desta narrativa. Como não tenho intenção de fazer tatuagem, apenas ouvia a roda da conversa, observando seus oradores e, obviamente, bebendo minha cerveja em uma caneca, enquanto esperávamos a moça se arrumar.

Mantinha-me em meu tipo de timidez, pois não conhecia o pessoal direito. Ainda mais não sendo de Santa Catarina... vai que uma gíria minha mal interpretada criasse uma celeuma. O problema foi que, por ser uma espécie de árbitro neutro, vez por outra (me) pediam a opinião do “carioca”.

Uma das quatro louras (eu ia dizer “uma loura”, mas em Santa Catarina, devemos especificar), a que tinha dreadlocks, disse que faria Shiva, nas costas. Com as mãos tentou, mais ou menos, nos mostrar onde. Bem, tomando por referência a coluna, ela queria que Shiva fosse estampado da vértebra cervical 3 até a lombar 2, ou seja, para nós leigos, do cangote ao lombo, passando por todas as torácicas. Haja braços e pernas para a entidade hindu! Eu ia sugerir Ganesh, um elefante tinha mais a ver com ela, mas não estava para maldades.

O jovem que estava ao meu lado, gente boa toda a vida, mostrou a tatuagem dele, no bíceps direito, MUV. Movimento Uniformemente Variado? Não. As iniciais de seu nome. Nome que não soube porque ele só era chamado de Jacaré. Virou meu camarada.

— Brother, a letra (tipo) é maneiraça, mas você podia botar um jacaré também. Um calango, quem sabe.
— Já pensei, velho, mas o problema é que não tenho ideia de qual vai ser a terceira (tatuagem). Tem que ter três, né?
— Sei disso, em número ímpar.
— Só...
Uma loura, a loura menos loura, entrou no assunto mostrando duas: um anjo, ou anja, num dos tornozelos e, jogando os cabelos para frente, surgiu um duende.
— Duende não! Gnomo! — Corrigiu-nos, contrariada e com certa seriedade.
Pensei em perguntar sobre a terceira, se a houvesse, mas preferi não brincar. Jacaré, meu companheiro de copo, por ter mais intimidade com a loura menos loura, perguntou-lhe risonho:
— E a terceira? Não vai mostrar?
— Essa só o Adriano pode ver, seu tosco!

Usando minha brilhante sagacidade, antecipei-me ao pensar que só o Adriano, seu namorado, sabe o que está tatuado lá, na virilha, o local oculto. Tudo suposição.
Deixemos esta verdade para lá, até porque, a loura que estava em minha companhia nos mostrou a dela. Era um desenho tribal, circulando seu calcanhar. Não tinha visto aquilo durante o evento onde nos conhecemos.
— E você carioca? — Surge a pergunta.

Queria desconversar. Gaguejei um pouco, enrolei e fui salvo pela quarta e última loura, a que tinha o namorado a tiracolo.

No braço dela: Matheus, escrito em itálico. Uma estrelinha no calcanhar e uma bruxinha no cangote, que foi exibida rapidamente. Será que o Matheus gostaria daquela bruxinha ali? Matheus, porém, é o nome do filho e não do namorado dela. Ainda bem que não abri o bico. Muito menos o namorado a tiracolo, sempre soturno. Mais tímido que eu, mas conhecido do pessoal.

Em vão esperei o momento dele falar; era, também, um não-tatuado, como eu. Depois dessa, não teve jeito. Chegava a vez do intruso que lhes conta este encontro de congressistas. “Agora fala, carioca”.
— Pô, galera, não tenho nenhuma. Acho maneiro, curto quem gosta disso, mas não pretendo fazer nenhuma.
- Ah! Fala... tudo bem, mas se você fosse fazer uma qual faria? – perguntou-me minha amiga.
- Diz aê, "cumpádi" – insistiu Jacaré, arrastando a voz, zoando meu sotaque de maneira que fiquei mais confortável.
- Bom, nobres barrigas-verdes, eu nem queria falar, mas já que insistem...
Ouvi alguns rumores, "gente, olha como ele fala", "muito figura". Senti-me num palanque de comédia, ou num tribunal. Criavam uma expectativa besta; eu com certa vergonha.
— ... mas já que insistem. Eu poria no meu braço uma caneca de chope, parecida com esta aqui – dei um gole – só que cheia. E debaixo do sovaco, uma perereca pulando uma haste de um junco, assim, ela toda no ar e o junco se envergando após receber o impulso do anfíbio. O simbolismo pode ser evidente.

Das quatro louras, duas entenderam e riram: a que me levou para lá e a dos dreadlocks. As outras riram em respeito, os dois caras acharam muito doido.
— E a terceira? — Alguém perguntou.
— Aí é demais, nem pensei nisso, mas é a tradição, então, não vou traí-la. Acho que escreveria algo em grego, num dos antebraços...

Eles gostaram e começaram a pensar numa frase maneira, ou apenas uma palavra: Sófos? Muita pretensão: Dérma? Pô, tatuagem já é na pele, e ainda escrevo ali o nome do órgão! Demos? Também não, a Igreja pode confundir; Ah, Énos! O vinho, mas se já tinha uma cerveja...

— Que se dane, depois eu penso nisso! — Falei em tom amistoso, conforme o clima.
E Jacaré fecha o cenho, pensativo. Procura copos vazios para preenchê-los, acha o de uma loura, a minha caneca e as preenche de cerveja. Após o silêncio ele se manifesta:
— Velho, essa seria uma boa frase para tatuar em alfabeto grego. Um "que se dane", ou um palavrão qualquer.
— Pois é, disse a loura menos loura, ia ficar legal. O que será que os gregos diziam quando estavam brigando?
— Será que eles falavam palavrão? — A loura com namorado, que não é o Matheus, porque Matheus é o filho dela, enfatizava a dúvida.
— Claro! — Responde a que estava comigo. Eu complemento:
— Falavam, como todos os seres humanos. Só não escreviam... bem, não sei... Quem garante que Aristófanes não xingou Sócrates de sacripanta? Sacripanta parece muito com um xingamento vindo do grego clássico.
E Jacaré, ainda meditabundo, como se voltasse à Academia ou ao Liceu da Grécia Antiga, diz:
— Falavam sim! Imagina os espartanos, deviam soltar os palavrões... Mas outro xingamento bom seria energúmeno.
— Não, não! Isso é latim!

Foi a única vez que o namorado da loura mãe do Matheus se manifestou com veemência.

Depois do silêncio, o grupo de pensadores teve o assunto cortado. A dona da casa chegou, a amiga da loura que estava comigo, única morena, alheia às risadas que se seguiram após o silêncio.
Fomos ao bar e não toquei mais no assunto “tatuagem”, porque pode terminar em filosofia de calão.

Teresópolis, 18 de abril de 2008. Revisitado em junho de 2011.