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domingo, 13 de novembro de 2011

PASSOS TRANSEUNTES




Em uma rua central de uma cidade periférica, um homem de bigodes caminha para sua casa: um apartamento no segundo andar de um edifício simples e antigo, controlando os passos como se o ar fosse rarefeito, ainda que ao nível do mar. Acabara de vir de uma consulta médica a qual muito resistia e que seu plano de saúde, precário mas caro, podia arcar. Descobriu ter o pulmão direito avariado pelo fumo. - Por que só o direito e por que não mostrara o defeito, digo, a doença, através das tosses ou das respirações forçadas? - tão forçadas e meticulosas como as de agora. No pequeno átrio do edifício, causa estranheza ao porteiro por ter sido cumprimentado celeremente pelo morador, incomum atitude de vezes anteriores.

O porteiro cumprira seu expediente e recebera parte de seu salário, a parte que o completava. Desce os dois degraus da entrada em apenas um salto e desmesuradamente trota pela calçada ocupando-se de separar as notas. Parte da féria vai ao bolso para as compras da casa e para a conta de luz, sempre um mês atrasada. A outra parte caberia à sua cachaça que, no bar mais próximo, pede-a junto com um refresco de maracujá. Durante o apoio no balcão, passaria algumas horas tentando gastar somente o reservado para seu luxo distraindo-se com as opiniões sobre seu time – tanto o da cidade de adoção quanto da cidade natal – que muitas vezes discordavam das visões do senhor de chapéu e camisa listrada. Visões estas que não as veria.

Este estava para findar suas doses de conhaque barato e uma garrafa de água tônica. Enquanto estava no balcão, não desgrudava os olhos de seu telefone celular, respeitosamente pousado à sua direita, alternando com a rápida averiguada nas notícias de um jornal popular que o bar gentilmente deixava à disposição dos fregueses mais assíduos. Estava calado e preocupado. As notícias, antes comentadas com exaustão, não passavam de confirmações de suas opiniões. Tentou se divertir com os quadrinhos e as manchetes frívolas da vida artística alheia, mas até essas não lhe despertaram nada. Um gole do conhaque, o último, seu celular toca e recebe as informações. Deixa o consumido para ser pago depois e corre para um orelhão porque nem quem o telefonara pode gastar muitos minutos do celular dele e nem o do senhor de chapéu e camisa listrada pode fazer ligações por causa dos créditos acabados. Apressado, arrastando os pés em passos curtos, chega ao orelhão e espera a moça estudante terminar sua chamada.

Antes de deixar livre o aparelho público – de maneira rápida – a moça estudante prende seus lisos cabelos em forma de coque firmando-os com uma caneta esferográfica, pega sua pasta do apoio do telefone, joga o cartão para dentro da pasta e, em seguida, a segura contra o peito. Espécie de proteção. Recusa o agradecimento-elogio do senhor de camisa listrada e chapéu. Anda olhando para baixo em marcha acelerada, parecia ir até à esquina. Raramente levanta os olhos senão para evitar um esbarrão. Durante o percurso, recebe galanteios oriundos do bar e de umas janelas, bem como é vítima de olhares de transeuntes criminosos. De uma dupla desatenta e pedestres, que ocupava toda a calçada, um pouco mais a frente, houve de desviar-se fazendo careta; destruindo sua beleza e deflagrando seu estado emocional. Desacelera e levanta a cabeça para a direita a fim de ver as roupas à mostra refletida em uma vitrine ordinária de uma loja antiga. Detém-se uns segundos com as pernas em entrepasso, os cabelos se soltam acidentalmente ocupando-a de outro dever e, logo, torna a seu percurso. Antes da esquina há um ponto de ônibus e ali se estanca. Ela refuga um vale-transporte que lhe é oferecido por um jovem de camiseta azul, alegando que não pegará ônibus algum. Decerto não, pois enquanto o jovem ainda oferecia o mesmo aos outros, ela entra no carro que acabara de parar em frente ao ponto, este guiado por alguém não identificado.

O jovem de camiseta azul continua a oferecer vale-transporte em troca de seu valor em dinheiro a cada um que chega ao ponto de ônibus. Parte de seu salário é composto por estes vales que vêm em quantidade maior que sua necessidade de se locomover pela cidade. Até porque estava em vias de conseguir um carro, bem usado, é verdade, mas seria dele em uma oportunidade de ouro, um ouro que ainda lhe faltava. Conseguiu “vender” um bom número, talvez. Foram-lhe solidários e, mais uma vez, verdade seja dita, não custa nada comprar vales-transportes e não necessita deles. Mantém-se na espreita à espera de novos compradores em potencial. Em quase meia hora, de tanto andar para lá e para cá no pequeno espaço do ponto, poderia ter percorrido uns três quilômetros. Parecia um tanto ansioso, talvez não tivesse chegado à sua cota desejada. Viu-se isso quando quis vender um vale a uma velhinha que saíra pela porta da frente do ônibus. Ademais, ela é isenta de pagar tarifa de passagem, ou seja, tem passe livre.

Ela toma a rua carregando toda a dificuldade que a avançada idade lhe atribui, além de um pequeno embrulho. Vai no passo que lhe convém, nenhuma variação aparente. Apesar de inclinada para baixo, levanta astutamente seus olhos para evitar esbarrões. Uma lentidão que pode incomodar os apressados. Somente uma vez verificou se o embrulho estava bem fechado. Vai que ele se abre de repente!, esses papéis de hoje em dia não valem nada. Da última vez foi cebola para tudo quanto é lado, sorte que acontecera na frente do edifício, o mesmo edifício simples e velho, onde ela agora chegou. Não vê porteiro algum que lhe auxilie. Vai por si mesma à porta do elevador. Pesada, abre-a com dificuldade e aperta o 2. No embrulho, está um nebulizador que pedira emprestado a uma amiga coetânea, pois percebera que seu filho tossia muito nas últimas semanas e, teimosa, torcia muito para que ele tivesse ido ao médico. Pode ser que o nebulizador lhe a ajude a se curar. Quem atende a porta, depois de tosses, é um senhor de bigodes.

Petrópolis 2004 - revisado em 13 de novembro de 2011.