
Acredito que tudo o que a humanidade já conceituou sobre "um comportamento humano" pode-se projetar nos cachorros. Eles ainda possuem o benefício do instinto e, em menor escala(dependendo de nossa loucura),a racionalidade e a emoção. São maus quando têm que ser maus e bons quando lhes convém. É intrigante.
Havia ou há uma clínica veterinária em Petrópolis com o lema estampado no letreiro "um tratamento humano para o seu animal". Sei não... será que o nosso "Mundo Cão" é para eles,
Canis familiaris, o Mundo Humano? Os veterinários poderiam estudar sociologia e antropologia também, caso quisessem entender mais sobre o cachorro, palavras dos próprios profissionais da área.
Muito a se pensar, conversar, debater, refletir, estudar em várias vertentes científicas e artísticas. Não é à toa que é tido como melhor amigo do homem, o nosso whisky engarrafado, como as sábias palavras de Vinícius.
O cachorro é engraçado por natureza. Uns mais do que os outros: O vira-lata, em primeiro lugar, seguido do Galgo e do Afghan Hound (também galgo). Já ouvi por aí que o Poodle adveio de uma experiência genética que o faz pensar ser humano. Os cães acompanham a todos os seres humanos e também a algumas outras espécies do reino animal ou artificial. É o animal universal e atemporal.
Eles estão sempre na companhia de quem lhes apetece
urbi et orbi. Nas pirâmides de Gizé, sob o tórrido sol do norte da África; nas monções asiáticas e na umidade equatorial; na Groenlândia, ajudando os esquimós na caça e pesca sob e sobre o mar congelado; farejando água no Atacama e subindo as infindáveis alturas dos Andes. Tossem nas grandes e poluídas metrópoles, bem como nas empoeiradas roças do mundo.
Com a dona de casa, rica ou pobre, participando de seus costumes; auxiliando mendigos e patrões compreendendo-os em todas suas frustrações insanas (ou racionais); dentro do carro, pondo a língua para fora e curtindo o vento da janela aberta. Caminhando pela estrada, sozinho, com seu propósito obscuro para nós; e adotando este escriba que lhes apurrinha numa exposição agropecuária.
Tanta lenga-lenga para chegar onde eu queria: no dia em que um cachorro me adotou antes dos shows na Exposição Agropecuária de Itaipava.
"Assucedeu-se" em 1998, tinha 20 anos os quais nenhuma Rita me roubara. Antes da crise de 99, vinte reais era muito dinheiro, mas o fato de depois das 19 horas passarem a cobrar ingressos, impeliu-me a chegar à exposição bem cedo, sozinho. Dei uma cipoada num whisky lá em casa e parti, decidido. Os ônibus não estavam empaçocados ainda, mas lotados. Eram 20 pratas para cervejas, caméis (plural de cachaça com mel) e muita preambulação perambulante pelas baias dos bichinhos. Dispensei o rodeio.
18h30. Cheguei, passando de passagem pelas comportas da bilheteria. O preço seria esperar a galera, que marcara às 23 na barraca da boite Rodeo. Já peguei uma cangibrina e parti para os aconchegos dos animais. O maluco botou uma fatia de laranja na borda do copo de plástico. "Para quê, cumpádi?", pensei. Mirei um barril de lixo, azulão, e como um frisbie aquela fração cítrica girou e bateu no meio do barril. Quando pensava em me desculpar pela sujeira, em minha hipocrisia de limpeza urbana, um vulto disparou em direção à laranja.
Chegou feliz, chafurdou o objeto, lambeu-o, decepcionou-se (talvez fosse um pedaço de carne, como o cheiro dos churrasquinhos) e veio até mim. "Pois é gente-boa, é apenas uma fruta". Porte médio, bege, rabo que iniciaria uma espiral. "Macho ou fêmea?", macho. Dei uma assobiada, fiz festinha no cocuruto dele e lhe desejei melhor sorte da próxima vez, sugerindo-lhe até que fosse para a área das barracas de picanha e afins. Tomei meu rumo e um gole daquela fubica que eu bebia. Como disse, estava disposto a saber algo sobre bovinos, equinos, caprinos e, quiçá, bufalinos.
O
Gente-boa se levantou, mostrou as patas, quis lamber minha mão, cafungou alguma coisa. Pedi-lhe permissão para me retirar, já me retirando. Vã tentativa. Ameaçava uns latidos e me seguia, amarradaço! "Então vamos, JB (Gente-boa), vamos dar um rolé por aí. Vamos ver outros membros de nosso Reino."
- Uaaaff, rrrr!
-Aí eu já não sei, tenho 17 contos agora, vai ser difícil eu arranjar uma coisa para você. Vamos lá.
- Rr Waaf!
- Não, faço Direito, na UCP, e estagio na Defensoria.
E assim fomos, num vasto e educativo diálogo, enquanto explorávamos lugares que só se visitam durante o dia, nas exposições. Ele me falou, com certo rancor, que as cadelas do hoje-em-dia são umas mulheres mesmo. Eu falei para ele não exagerar, que havia sim, umas mulheres cachorras, mas nem todas cadelas são assim tão mulheres. Ele aquiesceu, falou que não devemos xingar assim as mulheres/cadelas, muito embora algumas gostem disso. Também concordei.
Lá pelas 21h, meu celular (celular da família, no caso) tocou e era um comparsa que já havia chegado. Antes de me despedir do JB, fomos até à barraca, pedi mais uma cangibrina, igual a anterior, e um churrasquinho de frango.
- Toma aê, JB, mas segura a onda hein - dividimos a iguaria.
Nada mais falou. Pegou o "ganho" e sumiu para o escuro, lá perto da na arena do rodeio. Eu me encontrei com os caras:
-Fala Tackle, chegou cedo...
- É, vim para não pagar a entrada, mas já gastei nesse bagulho aqui. Nem sei o nome, mas é forte, vai um gole?
- Já se encontrou com alguém aí? - disse o outro.
- Não, só troquei uma ideia com o Gente-boa ali.
Apontei para o escuro e eles nem ligaram. Rumamos para uma barraca qualquer.
Itaipava, 5 de fevereiro de 2011.