Veio um ventinho
esquisito no fim de uma tarde de verão. Resolvi por uma blusa de manga
comprida, mas mantive a bermuda. Partiu supermercado!
O lixeiro não havia
passado. Os sacos estavam revirados; rasgados pelos cachorros e meticulosamente
abertos pelos seres humanos. Em frente a uma das escolas de minha vizinhança um
tipo de lixo, infelizmente comum, que poderia reciclar mentes: livros. Junto de
armários e estantes quebradas ou velhas, livros.
Uma rápida olhada, uma
titubeada, uma olhadela nos títulos. Mansfield Park, Jane Austen; um sobre Emily
Dickinson, dois de autores que não os conhecia, um da Pearl S. Buck em inglês.
Encartes e capas da enciclopédia Conhecer e dois atlas também em encartes. Foi
o que vi por alto até afastar um e outro volume e achar A História da
Filosofia, de Will Durant.
Este exemplar, junto
com O Mundo de Sofia e a República, de Platão, me levaram a gostar de Filosofia
e a salvar-me da decepção que tive no primeiro período da faculdade quando meu
então professor, uma lástima, não me fez saber do deleite que era a Filosofia.
Uma reprovação em sua matéria (por não ter respondido corretamente o “Dasein”
de Heidegger) foi fundamental para que, no semestre seguinte de 1996 pudesse
gostar de Filosofia por causa dessas indicações.
E ali, no chão, na
calçada, entre uma moita de coroa-de-cristo, (Euphorbia milii), um livro que foi importante para mim e haveria de
ser para outrem. Peguei-o e o levei comigo para as compras pensando em quem
poderei presentear com ele. E, se algum curioso ficasse mirando o livro em
minhas mãos, este seria o escolhido para levá-lo, com a seguinte dedicatória: “Caro(a)
desconhecido(a) (nome dele ou dela), aqui vai um presente do acaso. Feliz 2014.”
Data e meu nome.
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Esta a edição achada |
Somente um mendigo da
praça me olhou e pediu o cigarro que portava. Entreguei-lho.
Fiz as compras e
esperava que a moça da caixa registradora tivesse alguma curiosidade sobre o
livro, ainda que pensasse se tratar de um produto do estabelecimento. Se ela
fizesse isso levaria o livro. Não o fez. Guardei-o junto com o saco de pães e voltei
para a casa. Talvez pegasse mais um livro daquela fonte. A alguns metros via um
homem, aparentemente com seus 45 anos, agachado, com uma camisa que simulava um
time de futebol americano, número 89. Aproximei-me e falei:
- Que triste maravilha,
não?
Ele virou o pescoço e
disse:
- Cara, olha só. Não
pude deixar de pagar alguns. Veja, um em francês. Minha sogra lê francês.
- Eu peguei este aqui.
Embora já o tenha lido não poso deixar esta edição aqui.
- Este também li, há
muito tempo. Olha esse aqui, cara. Um livro do Museu Imperial, altas fotos. –
Levantou-se. Seguíamos para mesma direção.
Paramos e folheamos o
do livro de fotos do museu. Depois, andando, ele começou a comentar:
- No último edifício
que morei, no Jardim Botânico, aumentei minha biblioteca com muitas raridades.
- Cara, isso é comum,
sempre havia centenas de livros incríveis na lixeira do prédio onde minha avó
morava, em Copa.
- Ih, lá é um paraíso.
E de discos também. Uma vez achei uma coleção inteira de Monteiro Lobato. Leio
para minha filha de 6 anos.
- E minha tia que tem
toda a Comédia Humana de Balzac adquirida num “desmanche” desses. Sempre estes “velhos”
livros são bons, inclusive os científicos.
- Pois é. Eu sou
biólogo, e uma vez achei muitos livros do início do século passado. Aí meu
filho de 21 anos disse “para que isso pai, as coisas já mudaram”. Mas
justamente por isso, falei para ele, é importante vermos a evolução das coisas,
das ideias, das experiências e tal. Além de percebemos que usamos algumas
coisas ainda do século XVIII.
Depois de alguns
segundos e metros, ele falou, com uma voz lamentosa.
- Livros no lixo...
- É constrangedor. – Complementei.
- E quais argumentos
poderemos utilizar para defender um país que ainda joga livro no lixo.
- Moro aqui. - Cheguei
ao portão de minha casa. Apresentamos nossos nomes e ele mostrou onde mora. Logo
ali.
- Abração.
Petrópolis, 18 de
dezembro de 2013.