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terça-feira, 24 de agosto de 2010

ENTREVISTA RADIOFÔNICA


ZYL QUATRO MEIA SETE, Rádio-ó-Pá FM, noventa e oito vírgula sete megahertz, a rádio que além de música passa a ti, caro ouvinte, um pouco da literatura mundial. Agora faremos as seis perguntas relativas ao gosto literário do ouvinte. Veremos quem está na linha. Está lá?
- Alou.
- Está lá?
- Tô aqui, mas pode falar.
- Falas tu, de onde falas pá?
- Do Brasil, estado do Rio de Janeiro.
- Ah ié, temos um brazuca na linha, honramo-nos por ter um ouvinte d’álem mar.
- A honra é toda minha.
- Então, tu já sabes do proceder de nosso programa? Temos seis perguntas relativas à literatura e esperamos que respondas sucintamente.
- Com certeza.
- Vá lá, pois, vamos à primeira pergunta: Não podendo sair do Fahrenheit 451, que livro quererias ser?
- Fare quem?
- Fahrenheit 45. Não saindo dali, que livro querias ser?
- Eu, sendo um livro... bom... fico com Crime e Castigo, de Dostoievski. Raskholnikov tem um pouco de todos os seres humanos... Dom Quixote, por que não? São tantos... há o do Saramago...
- Excelente! Vemos que gostas de literatura universal. Contudo, vamos à segunda pergunta: Já alguma vez ficaste apanhadinho por um personagem de ficção?
- Ficar como?
- Apanhadinho, apaixonado por alguma personagem de ficção?
- Apaixonado? Claro, né? Por várias. Capitu, ela é o que imaginamos de beleza. Mas fico, mesmo, com Marie Claire, do romance Dança Imóvel, do peruano Manuel Scorza, não só pela beleza, mas por suas questões em francês. Tem a Senhora de Renal..., Helena, como não? Depois de toda a guerra por causa dela; e aquela do El Túnel, de Ernesto Sábato, que...
- Muito bom, ora, temos um típico indeciso pelas paixões das divas literárias. Vamos, no entanto, à próxima pergunta: Qual foi o último livro que compraste?
-Ih... xô me lembrar... acho que foi o Nuestra América , do cubano José Martí. Um livro de poesias.
- Qual o último livro que leste?
- Édipo e o Excesso, mais uma vez, do insigne professor Gisálio Cerqueira Filho, meu eterno orientador e mentor.
- E que livros estás a ler?
- Os da mesa de cabeceira, ou os...
- O que estás a ler, ponto.
- Bom, leio dramas de Henrik Ibsen, acabei O Pato Selvagem e agora leio Romersholm.
- Que livros levarias para uma ilha deserta? Dê-nos cinco.
- Cinco, hum... xô vê: “A Servidão Humana”, de Somerset Maugham; “A Montanha Mágica”, de Thomas Mann; “Escritos Filosóficos”, do Fernando Pessoa; "Memórias Póstumas de Brás Cubas", do Machado e "Jogo de Amarelinha", do Cortázar. É o que me vem à mente agora.
- Agradecemos vossa participação. Registramos todos suas respostas cá, aguardai na linha para que nossa equipe vos comunique as regras sobre como ganhar nossos prémios. Desde já, sabeis que podes vestir uma camisola da Rádio-ó-Pá FM noventa e oito vírgula sete megahertz, a rádio que além de música passa a ti, caro ouvinte, um pouco da literatura mundial... Em Lisboa, agora, faz 13 graus...

segunda-feira, 16 de agosto de 2010

AÍ CONFUNDE O PESSOAL IV



Caso 4
Bairro Valparaíso, Petrópolis-RJ, 1985 ou 86.

- Roseli, vai lá no açougue para mim e compra um quilo de lagarto redondo, por favor.

Mais uma vez a mãe pede para comprar esse bicho que provavelmente seria o almoço. O filho mais velho, com seus sete ou oito anos, pediu, tímido, autorização para acompanhar a empregada até o açougue e desvendar o mistério: Por que esse lagarto sempre chega embrulhado em um papel cinza ou pardo, sem as patas e o rabo? Nada a ver com os lagartos que conhecia até então e com gosto semelhante às carnes que, graças!, faziam parte das refeições da família. Graças também ao outro privilégio da família, o investimento no estudo. O estudo impediu o garoto de ir com a empregada doméstica.

- Posso ir também, mãe?
- Claro que não! Você já viu os desenhos na televisão e agora tem que acabar o dever de casa.

Ainda se tinha que fazer dever de casa na mesa da sala ou do quarto naquela época. Dever não feito, nada diferente seria feito senão ele, até a mãe tomar a lição. Roseli vai, Roseli volta, com um prêmio para os filhos: Uma garrafa de coca-cola de um litro. Os outros irmãos, mais novos, ainda não tinham deveres de casa para fazer a não ser algumas atividades lúdico-pedagógicas. A sorte do mais velho é que o dever era de Estudos Sociais, sua matéria predileta. A cidade Imperial e o estado do Rio sendo estudados.

A ida estratégica à cozinha, pela desculpa-necessidade de beber água, confirmou a mesma estrutura ordinária do lagarto redondo. Nada de escamas rajadas em verde e marrom, nada de línguas bipartidas nas pontas. Era um toco de carne vermelha, àquela altura sendo desembrulhada do plástico, que de coerência conotação/denotação, significado/significante, só mesmo o “redondo”.

Resignado, concentrou-se em findar o dever: Petrópolis fundada em 16 de março de 1843 por Júlio Frederico Köler, localizada na Serra da Estrela, principal rio o Piabanha, cidade residência de verão da Corte da capital do Império, colonização predominantemente alemã... Quase na hora do programa Manchete Esportiva, a mãe passa do corredor para a cozinha e avisa:

- Roseli, já assou a carne?
- Já, sim senhora.
- Então pode deixar na panela do molho, deixa em fogo branco, viu?
- Sim senhora.

Fogo branco não! De novo fogo branco era mencionado em matéria culinária. Um mistério adjacente ao do lagarto. Jamais viu um fogo branco, experiências próprias nas quais não houvera relação causa e efeito com o xixi na cama, pois, durante dias não fazia nenhuma faísca, mas a cama se molhava. Fogo azul, amarelo, vermelho, laranja. Branco, nunca.

Novamente na cozinha. Reparou nas panelas borbulhantes, bom aroma de temperos e condimentos diversos. Roseli foi à pia e o garoto aproveitou o fogão desocupado para dar uma inclinada no corpo, averiguar e sair vitorioso: o fogo era o azul de sempre que saía das bocas dos fogões. Realmente sua mãe não sabia diferenciar algumas tonalidades, logo ela, que lhe ensinara tanta coisa.

- Vou tomar a matéria, vem.

Saiu-se relativamente bem nas arguições iniciais de sua vida. Ironicamente, o lagarto redondo, fruto de suas inquietações, foi para a mesa e lhe salvara de demais perguntas. Em Matemática ou Português, suas piores matérias, não havia essa fortuna. Assistiu o esporte na TV e almoçou, concomitantemente. Hora de ir para o colégio.

Tempos depois, dúvida quanto ao réptil ainda latente, foi ao supermercado com o pai e o avô. Destravou-se de sua timidez e perguntou:

- Pai, por que o lagarto é vendido assim? Eles cortam e limpam antes para ficar mais bonito?

O pai deve ter rido, e se questionado "assim como?", embora o garoto não tenha percebido. Explicou-lhe que era uma parte do boizinho, que tem nomes diferentes do que pareciam ser.

- Patinho também não é pato, né?

- Isso mesmo, filho.

O avô também estava com eles. Enquanto o pai foi até o avô conversar algo, o garoto ficou na fila do açougue, lendo curioso os nomes das partes das carnes que não querem dizer aquilo que gostariam de dizer.

Pai e avô chegaram à fila e o garoto ainda tinha uma pergunta na manga:

- Mas a costela se parece muito com costela mesmo!

OBS: quanto ao fogo branco, descobriu sozinho, mais tarde, que era brando. E daí foi ao dicionário.

16 de agosto de 2010

sábado, 7 de agosto de 2010

AÍ CONFUNDE O PESSOAL III

Caso 3





Botafogo, Rio de Janeiro - RJ. Dez para as oito da noite. Verão.

O filho, 36 anos, recebe em seu apartamento a visita do pai, 63. Conversam à mesa da sala. Descascam amendoins cozidos - com casca - bebem caipirinha e cerveja.

Depois do chacoalhar das chaves e do estrondo da porta se abrindo, percebeu-se um vulto em preto e branco listrado. Passou da cozinha para o corredor. E também da cozinha se ouve a porta fechar e a empregada empurrando a bicicleta para a área de serviço.

- Selene, tá tudo bem com o Gustavinho? – Pergunta o filho à empregada.
- Está sim Dr. Leandro. Boa noite, Sr. Ivair. Tá sim, ele estava discutindo co’s amigo depois que de andar uma volta de bicicleta. Todo mundo saiu rindo da cara dele, Aí, Dr. Leandro, eu perguntei o que aconteceu mas ele só panhô a bicicleta e saiu correndo co’ela nas mão. Tive que correr pra acompanhar o menino. Não entendi nada do que lê me explicou. E depois...

Selene ainda dava algumas informações, tratando o idioma do melhor modo que podia, quando pai e filho se entreolhavam. O consenso foi ver o que Gustavinho fazia.

No quarto, avô e pai dos respectivo neto se assomaram à porta. O garoto, suado, havia jogado a camisa do Botafogo na cama e correra para o computador. O pai se aproximou ao garoto, agora mais sereno.

- O que houve, Gustavo?
- Quero provar para aqueles babacas que o Garrincha também foi um grande correndo de bicicleta – e continuou em concentrada pesquisa, teclando e olhando o monitor – qual era o nome dele vô, Mané?
- Sim, Gu, é o apelido de Manuel. O nome dele é Manuel Francisco dos Santos.
- Não, ora, Gustavinho...
- Shh! - O avô pediu silêncio ao filho e com a palma da mão e o semblante sugeriu que deixasse o garoto se aprofundar na pesquisa.
- O Garrincha não foi campeão de bicicleta também, vô? Não foi, pai?
- Não sei filho, acho que não. Até agora só sei que foi campeão de futebol pelo Botafogo e pelo Brasil, um dos maiores jogadores que tivemos.
- Pesquisa aí, garoto. Depois você fala para a gente o que achou. - Completou o avô.

Voltando à sala:
- Mas, pai, por que não falamos logo que Mané foi jogador de futebol?
- Deixa ele pesquisar, vai ser bom para ele perceber que nem sempre o nome de alguma coisa homenageia quem contribuiu para tal coisa.
- Só que ele tem só 9 anos...

A mulher chegou do trabalho, deixou a empregada ir para casa, falou com marido e sogro, tomou banhou, mandou o filho sair “desse” computador e fazer alguma coisa que prestasse.
- Não achei nada do que eu queria e ainda me confundi mais. É só o nome da Ciclovia, mas por quê?

Risos, saudáveis risos acolhedores. A explicações vieram, elucidaram-se algumas questões, piadas. Entretanto:

- Tá bom, pai, tá bom vô? Mas em que times jogaram Marechal Rondon e João Saldanha? Eles também são nome de ciclovia.

27 de julho de 2010.

segunda-feira, 2 de agosto de 2010

AÍ CONFUNDE O PESSOAL II


Caso 2

São Paulo-Capital, mano. Qualquer hora, qualquer dia, porque a cidade não pa(á)ra, tá ligado?

- Não, meu, desacredito! Vamos para lá agora, o Dezão vai ficar louco quando souber disso!

Expliquemos que isso tudo foi verdade verdadeira. Thalita bateu na porta do apê de seu primo, Patrick, para dizer que, finalmente, sim. Sim, ela faria uma tatuagem. O Dezão é o tatuador, artista, mais firmeza da Galeria do Rock, no Centro, perto do Anhangabaú, para quem não conhece. Para lá foram. Patrick ainda está incrédulo:

- Que isso Thá?, tipo, tudo que eu queria, prima! E vai ser daquele lôko lá que você falou, o que escrevia benzão e que o pessoal achava que ele era várias personalidades?
- Ele mesmo. Mas, tipo, não era bem assim que Fernando Pessoa era conhecido. Lembra que eu te falei dos heterônimos?
- Heterônimos... só! Achei que era de hormônio, você é farmacêutica, né, aí fiz a ligação, tá ligado?
- Depois te explico, o elevador chegou, vamos, já chamei o táxi.
- Tem o modelo aí, Thalita?
- Claro, está na bolsa. Do Pessoa e dos heterônimos.

A tatuagem seria de uma famosa caricatura d’O Poeta

Durante o percurso, Patrick cintilava a felicidade no semblante. Brilhava mais que tinta fluorescente de sua última tatuagem, até então a décima-oitava. Thalita jamais negara a possibilidade de ter uma tatuagem, só não sabia o por quê. Patrick não sabia se falava da tatuagem ou de Fernando Pessoa.

- Curti muito aquele churras que a gente conversou sobre altas coisas, inclusive sobre o Pessoa. Não entendi muito bem, mas foi super maneiro aquele poema dele sobre tomar porrada.
- Poema em linha reta. Quem nunca tomou porrada, né?
- Isso, muito da hora! Todo mundo já levou a sua.

Terminavam a Avenida do Estado; era só pegar a Senador Queiroz e já seguir pela 24 de maio. “Não eu pago”, “Imagina”, “Sem essa, vai”. Alguém pagou a corrida e seguiram para o estúdio do Dezão.

Dezão tem dois e dois de altura, 30 anos de tatuagem, e luta caratê e boxe tailandês: e é gente boa. Nada mais se sabe sobre ele; nem Patrick, seu amigo e freguês. Com a chegada de Patrick ele parou o serviço. Estava fazendo um grou no deltóide de um japonês, pediu-lhe para esperar e atendeu ao amigo. Thalita foi apresentada, ela mostrou o desenho e Dezão falou... para o japonês:

-Aí japa, espera lá fora que tenho um serviço de emergência.

Thalita mostrou a panturrilha - ali seria a tatuagem - e, depois de perguntar se ia doer, falou que queria, depois, mais outras tatuagens, mas que ela faria o desenho para ele.

- Calminha, Thalita, uma coisa de cada vez.

Dezão pegou nova pistola nova agulha, tinta preta. Olhou o desenho, olhou a cara de Thalita, olhou a panturrilha, passou os produtos químicos de asseio no local, pousou a caricatura de Fernando Pessoa no cavalete apropriado e começou. Patrick esfregava as mãos, falava pouco.

- É fácil o desenho, né Dezão?
- Filha, - semblante mais sério que Thalita já viu - toda a arte, é fácil quando se tem sentimento e amor. O amor pela arte que vai determinar se é fácil ou não.

Refletiram. Desenhava. Thalita falou um pouco com o primo.

- Então, Patrick, aí as outras figuras quero fazer aqui e aqui também.
- Só, três é um bom número.

Dezão olhou meio assim para aquele papo. Terminou o esboço. Melhor até que o original. Marcou outro dia para reforçar os contornos, o pagamento seria com a obra terminada. Pensava em chamar o japonês de volta.

Thalita, na despedida, começou a falar das futuras tatuagens. Seria assim, seria daquele jeito, poderia ser assim. Dezão, porém, achava se tratar do mesmo desenho. Não fez mal em perguntar:

- Ô moça, me desculpe, mas você gosta mesmo do Santos Dumont, hein! Tanta tatuagem de um cara só!

29 de julho de 2010.