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segunda-feira, 16 de agosto de 2010

AÍ CONFUNDE O PESSOAL IV



Caso 4
Bairro Valparaíso, Petrópolis-RJ, 1985 ou 86.

- Roseli, vai lá no açougue para mim e compra um quilo de lagarto redondo, por favor.

Mais uma vez a mãe pede para comprar esse bicho que provavelmente seria o almoço. O filho mais velho, com seus sete ou oito anos, pediu, tímido, autorização para acompanhar a empregada até o açougue e desvendar o mistério: Por que esse lagarto sempre chega embrulhado em um papel cinza ou pardo, sem as patas e o rabo? Nada a ver com os lagartos que conhecia até então e com gosto semelhante às carnes que, graças!, faziam parte das refeições da família. Graças também ao outro privilégio da família, o investimento no estudo. O estudo impediu o garoto de ir com a empregada doméstica.

- Posso ir também, mãe?
- Claro que não! Você já viu os desenhos na televisão e agora tem que acabar o dever de casa.

Ainda se tinha que fazer dever de casa na mesa da sala ou do quarto naquela época. Dever não feito, nada diferente seria feito senão ele, até a mãe tomar a lição. Roseli vai, Roseli volta, com um prêmio para os filhos: Uma garrafa de coca-cola de um litro. Os outros irmãos, mais novos, ainda não tinham deveres de casa para fazer a não ser algumas atividades lúdico-pedagógicas. A sorte do mais velho é que o dever era de Estudos Sociais, sua matéria predileta. A cidade Imperial e o estado do Rio sendo estudados.

A ida estratégica à cozinha, pela desculpa-necessidade de beber água, confirmou a mesma estrutura ordinária do lagarto redondo. Nada de escamas rajadas em verde e marrom, nada de línguas bipartidas nas pontas. Era um toco de carne vermelha, àquela altura sendo desembrulhada do plástico, que de coerência conotação/denotação, significado/significante, só mesmo o “redondo”.

Resignado, concentrou-se em findar o dever: Petrópolis fundada em 16 de março de 1843 por Júlio Frederico Köler, localizada na Serra da Estrela, principal rio o Piabanha, cidade residência de verão da Corte da capital do Império, colonização predominantemente alemã... Quase na hora do programa Manchete Esportiva, a mãe passa do corredor para a cozinha e avisa:

- Roseli, já assou a carne?
- Já, sim senhora.
- Então pode deixar na panela do molho, deixa em fogo branco, viu?
- Sim senhora.

Fogo branco não! De novo fogo branco era mencionado em matéria culinária. Um mistério adjacente ao do lagarto. Jamais viu um fogo branco, experiências próprias nas quais não houvera relação causa e efeito com o xixi na cama, pois, durante dias não fazia nenhuma faísca, mas a cama se molhava. Fogo azul, amarelo, vermelho, laranja. Branco, nunca.

Novamente na cozinha. Reparou nas panelas borbulhantes, bom aroma de temperos e condimentos diversos. Roseli foi à pia e o garoto aproveitou o fogão desocupado para dar uma inclinada no corpo, averiguar e sair vitorioso: o fogo era o azul de sempre que saía das bocas dos fogões. Realmente sua mãe não sabia diferenciar algumas tonalidades, logo ela, que lhe ensinara tanta coisa.

- Vou tomar a matéria, vem.

Saiu-se relativamente bem nas arguições iniciais de sua vida. Ironicamente, o lagarto redondo, fruto de suas inquietações, foi para a mesa e lhe salvara de demais perguntas. Em Matemática ou Português, suas piores matérias, não havia essa fortuna. Assistiu o esporte na TV e almoçou, concomitantemente. Hora de ir para o colégio.

Tempos depois, dúvida quanto ao réptil ainda latente, foi ao supermercado com o pai e o avô. Destravou-se de sua timidez e perguntou:

- Pai, por que o lagarto é vendido assim? Eles cortam e limpam antes para ficar mais bonito?

O pai deve ter rido, e se questionado "assim como?", embora o garoto não tenha percebido. Explicou-lhe que era uma parte do boizinho, que tem nomes diferentes do que pareciam ser.

- Patinho também não é pato, né?

- Isso mesmo, filho.

O avô também estava com eles. Enquanto o pai foi até o avô conversar algo, o garoto ficou na fila do açougue, lendo curioso os nomes das partes das carnes que não querem dizer aquilo que gostariam de dizer.

Pai e avô chegaram à fila e o garoto ainda tinha uma pergunta na manga:

- Mas a costela se parece muito com costela mesmo!

OBS: quanto ao fogo branco, descobriu sozinho, mais tarde, que era brando. E daí foi ao dicionário.

16 de agosto de 2010

6 comentários:

  1. Parafraseando Guimarães Rosa, em "Famigerado":

    "Eu vim preguntar a vosmecê uma opinião sua explicada": essa coisa de que as pessoas sabem, pelo paladar, se é carne de vaca ou de boi, é pura exibição, né?! [risos!!!]

    Clap, clap, clap para mais esse "Aí confunde o pessoal".

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  2. Realmente,existem coisas que complicam sério a vida da gente,rs.Uma delas é a estátua do Imperador Dom Pedro I na praça Tiradentes,no Rio.E na praça Quinze,local do Paço imperial;o do mártir da inconfidência,o Tiradentes :)

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  3. Que saudades de ler dessas histórias/memórias que eu tanto gosto de ouvir e compartilhar com você!

    Eu também tinha esta mesma dúvida, a do lagarto/patinho/etc... E demorei para entender pq o fogo do fogão é azul, e não amarelo (laranja) como da fogueira de São João... (É pq mesmo? Hm... acho que já me esqueci. rs)

    beijos, meu amor!

    Ana Letícia.
    www.mineirasuai.wordpress.com

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  4. Kkk... como morri de rir com a história! Rs! Tive essa dúvida tb quando criança, mas imaginava que fosse outra espécie de lagarto: o comestível para humanos. Rss! Se bem que na fome, tem gente que come papacu rasteiro. Ih, deixa pra lá, tô complicando tudo! Parabéns pelo texto! Bisous!

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  5. Ah, esse garoto me lembrou um outro que tinha as mesmas dúvidas, como direi, semântica/linguística/culinária/zoológica mas com o patinho, citado aí no conto. Não só com o patinho e com o próprio lagarto: miúdo de porco também. "Como assim miúdo de porco? Era um porquinho?". Aí gostava da palavra mocotó, tanto que apelidei dois porcos da fazenda de minha avó pra rimar:Mocotó e Rabicó.

    Mais tarde, na vida adulta, o então garotinho mudou de estado e se deparou cum questões filosóficas mais complexas: qual a diferença entre uma mandioca e um aipim? =P

    Um abraço, meu velho! Sempre bom passar por aqui - e estou me atualizando aos poucos.

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  6. Amei os artigos, principalmente do lagarto redondo.

    Forca

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