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segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

CUIDADO VANGELIS


Sua mãe, com aquele mesmo sorriso, braços abertos para lhe acolher. Ele estava estranhamente menor, com 11 ou 12 anos, mas com a cabeça, a mente, os pensamentos de sua idade adulta, 26. Sua mãe vinha e ele ia à ela. Mais atrás, porém, uma figura crescia, tomava moldes de uma velha, tão apavorante quanto pequena, vinha crescendo uma silhueta macabra. À medida que a velha superava o tamanho de sua mãe, ultrapassava-a. Começava a ganhar as formas, os semblantes, a voz de seu senhorio, a quem devia dois meses de aluguel e o ameaçava de despejo. Ele olhou para os lados, via o oráculo; e depois, seu pai aparecia com uma foice, sério, forte. Ele berrava e nada saía. Era em grego, era em inglês. Ouvia sua mãe lhe chamar pelo carinhoso apelido: “Vangas”; seu pai, ocultado por uma fumaça, severo e carinhoso: “Vangelis”. E a foice virava machadinha apontada para a figura do senhorio. A velha figura do senhorio lhe falava: “Hey, Sr. Kapatos, é para hoje, e a responsabilidade é sua”. Ele tentava berrar, se explicar, se desculpar de não sei o quê, tentava se destravar, chegar até sua mãe... a machadinha disparou para uma direção qualquer e...

- Ahhhhhh! Matras!

Soltou o grito, curto, algo como “Mãe”, em grego. Recuperou a respiração e se aliviou um pouco, não sabe de quê? Ainda estava sob os cobertores, apesar do aquecimento central de seu apartamento em Old Astoria, Queens, NY. Havia forte luz pelas frinchas de sua janela. Devia ser quase dez da manhã, ou talvez cinco p.m. Esticou-se na cama, saindo da posição fetal, suava. Despertou, afinal, ao sentir o odor dos cigarros que estavam no cinzeiro da cabeceira. Sentou-se na cama. Há um mês, pouco mais, pouco menos, não sonhava daquela maneira. Tentou tatear o interruptor do abajur, desistiu e somente pegou um dos maços que estavam à mesa. Um George Karelias, o cigarro de seu pai, Dimitrios, causa da luta dele contra o câncer; por isso deixou os maços... com ele. Procurou acendê-lo, mas não achou o isqueiro. Levantou-se para ir até à cozinha, um fósforo ou numa das bocas do fogão poderia resolver o problema. Ainda grogue, tropeçou em algo, xingou em grego. Era uma edição em capa dura, bem elaborada e comentada, de Crime e Castigo, em inglês. Livro sugerido por Irina, presente dela, sua namorada russa. Ela chegou aos Estados Unidos pouco depois que ele, três ou quatro anos depois. Mas se conheceram em 2009.

Pegou o livro e o pôs na cabeceira, agora acendendo o abajur, achou o isqueiro, que estava dentro do maço de Camel, seu cigarro. Viu os remédios, a tarja preta aclarada pelo amarelo da lâmpada. Desejou beber algo, mas se lembrou os remédios tinham horários. Sua tia lhe traria mais caixas de Rivotril? Pai e mãe em Larissa, mas seus tios ainda em Nova Iorque, além da comunidade grega, forte. Sua tia compraria mais uma caixa para ele. Seria a hora do remédio? Dr. Kaczinsky, que disse ele mesmo? Não repetiria a tolice de engolir uma caixa inteira e beber Bourbon. Ou foi com vinho? Chega desta besteira:“encare-se, Vangelis”. Que horas seriam?

Ligou o celular, mensagens. Foi ao telefone fixo, a secretária-eletrônica lhe informava onze mensagens. Deixou-as se pronunciar sem as ouvir. Lia o capítulo em que Raskolnikhov estava em vias de assassinar as irmãs Ivanóvna: a cena primorosa do romance de Dostoievski. Justo este, como assim, como não? Foi à geladeira e pegou uma garrafa d’água; queria vodca. Lembrou-se do horário dos remédios e também de sua vida. Será que Irina gostaria do filme Zorba, O Grego, presente que ele guardava para ela para o dia 6 de janeiro? O dia que os cristãos ortodoxos se presenteiam, dia dos reis.

Aproveitou o pensamento, largou o livro foi colocar a trilha do filme Zorba, O Grego, obra musical de Mikis Theodorakis. Abriu a janela, para que todos ouvissem sua Grécia. Sentou-se na cama novamente, apagou o cigarro, olhou a capa do CD e também a do DVD. É impressionante como Anthony Quinn se parece com seu pai, mas ele não tinha nada a ver com Alan Bates. Seria melhor Irina ler o livro em vez de ver o filme? Que tal os dois? Ela veria pelos olhos do diretor cipriota Cacoyannis, e leria as belezas descritas por Nikos Kazantizakis, o autor.

- Onde estão vocês? Odeio a neve! Hellas!!!

Gritou em grego. Acendeu um Camel, depois o apagou e pegou mais um Karalis. Aumentou o som, começou a dançar como Zorba e Basil no filme, como dançavam todos seu familiares e conterrâneos nas festas no Queens. Bateram na porta, o celular tocava. Atendeu o celular, era Gürcan, seu colega turco, na Saint John’s University. Desligou. Começou a dançar. Dançava como nunca. Pararam de bater na porta. Desligou o som. Foi dançando até a porta. Olhou pelo olho-mágico, ninguém. Sentia um frio, uma saudade. Parou, bebeu mais água, largou a garrafa no chão, jogou o cigarro no cinzeiro. Tudo se apagou. Sem mais lembranças. Uma mistura de tudo e nada. De lixo e frio.

Saltou pela janela, tomando distância desde a cama. Um mergulho de profissional, nono andar, 30 metros. Seu corpo fez a curva perfeita no ar. Era o primeiro domingo do ano de 2011.

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Petrópolis, 3 de janeiro de 2011.

18 comentários:

  1. forte né!? rebuscado também... gostei (:

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  2. Sem sombra de dúvidas,esta tragédia engendrou uma realidade completa pra sua crônica,amigo.E o que dizer melhor de sua ficção,mestre Quintella?Belíssima.E tem algumas características precoces da vida imitando bem a arte,bem ensejadoras,sim...Um estudante de direito,com um conhecimento profundo sobre criminologia,esqueceu tudo,atropelou tudo,pra criar a teoria do crime permitido...Ter um começo de vida novo matando a velha usurária e filha com um machado,e assim pagar até o lugar onde mora, pra não ser despejado...(Katharina Capatos, disse ao jornal "The New York Post" que ele estava preocupado em ser despejado de seu apartamento.)-Caterina Ivanovna, ex-noiva de Dmítri, é, na verdade, a jovem Polina, que Dostoievski conheceu quando se refugiou de seus credores na Europa.Não são raras as referências a ela em sua vasta obra, cada qual, com um nome diferente-Até quanto do ser humano é abrigado de sanidade??Sr.Kapatos vai tentar de novo o salto?!Ou se arrependerá como nosso caro, Rodian?!Ainda é interessante a leitura de Crime e Castigo em que Sônia compartilhara várias leituras com Raskólnikov sobre o novo testamento.A janela o qual o Sr.Kapatos se atirou fica no bairro de'Hell's Kitchen'.E que a significação de seu nome significa 'MENSAGEIRO, ANJO'.Fiquei curioso e resolvi pesquisar mais um pouco;procurei 'Sibéria'lugar em que Dostoiévski e Rodian ficaram...e adivinhem:Sibéria quer dizer 'Grego'o Vangelis é grego.Ou também pode ser'Astros',algo ligado pro suicida?Pro divino?Mora o 'ordinário' e o 'extraordinário' em Vangelis...Qual o valor da vida?!Dostoievski,ele próprio teve oportunidade de dar valor à sua própria vida, uma vez que esteve vendado num campo de fuzilamento para levar um tiro e no último minuto foi-lhe concedido o perdão. Este aspecto também está bem realçado na sua obra, quando refere na voz de Ródion que não quer apenas existir, mas viver...Teoria da conspiração??!Ou teremos 'Recordação da casa dos mortos?'O código de Vangelis?

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  3. Jordan, seu comentário, que é um ensaio. está guardado aqui comigo, gravado. Junto com o comentário de meu irmão. Este conto está muito bom para pensar!

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  4. Vejo uma grande confusão nisso tudo: a presente ausência do famoso benzodiazepínico que implica [in]diretamente na tentativa de suicídio, podendo ser reação adversa ou ainda uso incorreto da medicação. Como era fumante, pode ser que tivesse tosses frequentes e todos ao redor associaram ao cigarro, quando na verdade poderia ser os primeiros indícios de que o tratamento estava errado ou em doses a serem ajustadas. E mais: embora tenha optado pela água no fatídico dia relatado acima, tudo indica que ele se embriagava com frequência. Exames hepáticos poderiam ajudar a fechar o disgnóstico e arrisco que o álcool e o benzodiazepínico, juntos, deprimem mais o SNC do que deveria.

    Admito: Dostoievski dá um charme e tanto à vida desse sujeito. Referências assim tornam a vida miserável menos insignificante. Mas aí já vejo aquele ar corrosivo do Dr. House provocando a todos e concluindo que a vida dele não mereceria manchetes se soubessem, desde o início, que o Rivotril lhe causara toda confusão mental. Ele sofria de insonia, e deu no que deu!

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  5. O House deve ter influenciado na vida quase morte de Vangelis. E deve ter deixado o Kaczinsky p da vida.

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  6. HAHAHAHAHAHAH,já imagino até o sarcasmo do rapaz da bengala!Fica tranquilo Quintella,sempre às ordens amigo.

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  7. Bom aproveitamento do fato, Thiago. Um conto com ares de crônica. Ou vice-versa.

    Dá o que pensar mesmo. Pensei tanto que nem vou falar agora. É que já estou meio zonzo de sono, efeito do rivotril...

    Vou é pular já, desta janela virtual para a minha cama!

    Abraços

    P.S.: Amanhã comento pra valer.

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  8. Gosto destes fatos concretos misturados com ficção.

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  9. Que estranho ponto de imbricação da ficção com a realidade. Se no seu conto ocorresse o mesmo desfecho do fato, pareceria patético, de simbolismo tragicômico: saltar de um lixo de vida e ser salvo da morte por um monturo que não era para estar ali. Hellas!

    Um conto globalizado, algo existencialista, em que o fracasso da escolha sugerida pela angústia, quase um reflexo, vem do encaminhamento ao espaço extra-conto, do real! A grande sacada foi você mencionar o fato que o inspirou, propondo um questionamento sobre a matéria da ficção.

    Curiosamente, pela menção, no primeiro parágrafo, à machadinha e ao senhorio, logo lembrei do Crime e Castigo. Que ele esteja dentro do sonho do personagem é outra menção à relação solidária entre o ficcional e o real.

    Grande abraço.

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  10. uma escrita sempre forte, seu traço marcante.

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  11. Que exercício interessante! Eu imagino um contexto diferente para essa história, mas não tenho o seu talento para transformá-lo em literatura.

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  12. Engraçado e mórbido eu achar que a realidade imitou a fantasia e não o contrário? A história real parece simples perante a sua crônica, Peste!
    Sensacional como sempre!

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  13. Sem palavras. Nem tenho como comentar. Como vc mesmo disse, um croniconto digno, profundo, sensível, surpreendente, estarrecedor.
    Beijos muitos.

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  14. Nélson Rodrigues também se baseava em tais fatos que saíam nos jornais para construir suas histórias e personagens de “A vida como ela é”.

    Aqui, neste conto que é também uma crônica (como detesto rótulos!) vejo uma construção bem mais densa, divertida e com influência de nosso russo gente fina, o Dostô, que gosta de vasculhar o sentimento humano em suas peculiaridades – detalhes que muitos deixam passar ou não enxergam dado o ritmo de nosso tempo indiferente e fugaz. Adoro tais exercícios e você, meu nobre Quintella, os faz com maestria!

    Vangelis estava com saudades de casa, do “eu”. Em NY, a Babilônia, era apenas mais um imigrante que atrasava aluguel, não entendia o que os ianques falavam e ainda rouba-lhes o emprego. Na Grécia ou Chipre poderia dizer que descendia daquela estirpe criada por aqueles lados: cidadão.


    Não tinha Rivotril certo.

    Cada vez melhor, meu nobre Djalma! Um abraço!

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  15. Surpresa total. A figura macabra, as lembranças dos remédios de tarjas pretas. Muito bom!!!
    Abraços!!!

    João Lenjob.

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