FEIJÃO: DO COZIMENTO AO PLANTIO
- Aí, vou fazer um feijãozinho pro nosso almoço.
Comunicou-me o Jorginho, colega de casa. Além do feijão, arroz e uma farofa bem incrementada de farinha e sal. O alho triturado em nosso triturador manual giratório ficaria dividido para o arroz e o feijão. Nosso café da manhã tinha sido só café; e vinha sendo isso nosso alimento até ele decidir fazer o almoço.
Achei que ele tivesse me convocado para cozinhar esta tradicional iguaria de nosso país. Faltava isso para eu me certificar um brasileiro. Já fiz samba e sambei; já joguei futebol que, em determinado período, até que o fiz bem; elaborei muitas caipirinhas; sei de quem sou filho na religião das forças da terra. Entretanto, jamais havia me motivado a fazer um feijão embora soubesse que, cedo ou tarde, haveria de fazê-lo.
Não foi dessa vez. Ele somente me comunicou. Assumiria todo o fazimento de nossa principal refeição do dia, digo, da semana. Continuei o que fazia, escrevia enquanto conversávamos em dois diferentes ambientes: ele na cozinha e eu no meu quarto. Preferi, depois, dispor-me a ajudá-lo, em prontidão, sentado à mesa da cozinha, bebendo café e fumando.
A panela de arroz estava esquentando. Ele escolheu uma das penelas de pressão que a casa oferece, a mais detonada das duas detonadas que tínhamos naquele então. Reclamou que as panelas antigas não vinham com o medidor de volume d’água e que teríamos que ir pelo olhômetro. Teríamos? Nós! Quer dizer que estava oficialmente incluído na empreitada. Senti-me honrado e necessitava recordar alguns de meus conhecimentos empíricos adquiridos em anos de despretensiosas observações. Permaneci sentado, no entanto.
Um simples corte na ponta do saco de feijão deu o duto para os grãos serem despejados naquela quantidade tal de água. Havia uma confiança extrma naquela marca de feijão a ponto de desprezar a seleção dos grãos defeituosos e eliminá-los. Uma pequena dificuldade natural para fechar a panela, enfiar o pino em seu local apropriado e levar a mehlor parte de nosso almoço ao fogo. Emprestei meu isqueiro para acender fósforos já queimados os quais haviam sido guardados exatamente para essa função.
Tudo isso ocorreu pouco antes das dez horas da manhã, desse modo, restou-nos esperar o vapor ser liberado sensivelmente pelo pino e deixar os grãos cozinharem à vontade. Cada um foi para seus respectivos aposentos para outros afazeres. Eu pus música no computador, ele foi ver televisão. Em não menos de dez minutos reaparecemos à cozinha, juntos, com olhares de preocupação e dúvida, alternando-os para a panela e para nossas faces. O vapor que deveria sair não saía, de lugar nenhum. Ele estava ajudando a panela a trepidar; perigo!
Nossas hipóteses pululavam tais quais os feijões: “o que estava errado?” “Deve ser muita água”, “o pino pode estar entupido”, “ainda não deu tempo para ele funcionar”, é a quantidade estúpida de feijão que pusemos!”. Ficamos com essa como a mais crível.
Ainda durante o processo de amenização do comportamento da panela, lembrávamos, mentalmente, do histórico de acidentes horríveis ocasionados por maus usos da panela de pressão. Coisas que fazem parte do folclore de toda criança. Ele começou a expor suas reflexões:
- Pô, minha mãe disse que se isso explodir...
- É – interrompi – minha mãe também tem uma vasta gama de relatos trágicos em acidentes com essa p...
E o maior risco era nós não estarmos vivos para contar mais um capítulo dessas tragédias, mas faríamos parte dos casos trágicos.
- É só levar a panela à pia, - eu disse - deixar cair um filete de água permanente, se possível, e abrir bem devagar. – Foi uma instrução que passei baseada na pura fé. Nada aconteceu.
O próximo passo foi achar a outra panela. Eram duas panelas e uma tampa. Completamos o outro conjunto, tiramos quatro conchas cheias e depositamos em uma panela ordinária, a fim de diminuir a quantidade de feijão. Descobrimos alguns grãos mutantes, outros de diferente espécie e até um que estava envolvido em papel vegetal, daqueles que serviam para fazermos mapas e que envolvem algumas balas; um grande achado para nós, uma ridícula descoberta para a humanidade. Na tampa da primeira panela, morreram alguns grãos.
À segunda panela, bem mais bonita e confiável, foram despejados os grãos remanescentes, que ainda eram muitos, da ordem de 103. Água em mais humilde quantidade e fogo de novo. Garanto que nos sentíamos mais experientes após as primeiras adversidades. O arroz, nesse desesperador ínterim, estava pronto.
Xic, xic, xic. E o pino girava alegre e veloz, como manda o figurino e sua conveniência. Aquele barulho da infância, da cozinha antes do almoço; o chiado que povoa a mente da maioria dos brasileiros. Relaxados, fazíamos piadas e rememorávamos fatos bons do cozimento do feijão no decorrer de nossa história. Era só prestar atenção no vapor. Farofa feita. Houve até uma dramatização cômica quando deduzimos que o feijão estava pronto e abriríamos a panela. Dali para o prato, só satisfação. Sobrevivemos.
O feijão foi o almoço, o jantar, o almoço do dia seguinte, o café da manhã de outro e, depois do fim de semana, ainda rolou um caldinho. Ainda temos muito que aprender, obviamente. Mas não nos explodirmos ali foi uma grande e satisfatória experiência.
O caldinho veio na noite de segunda-feira. Nem precisou de sal. Organizamos a pia após lavarmos a louça. A lua, surgindo da montanha, minguando, nos deu um espetáculo. Mas embaixo da janela da cozinha que dá para a varanda nasceu um feijão, um broto de feijão, sem o artifício do algodão no potinho de iogurte. Acreditamos que o bicarbonato de sódio, que um dia o vento espalhou pela pia, e a a´gua corrente que de algum canto mina ali, foram seus fertilizantes. Outra hipótese cientifica que elaboramos. Ali este broto permanecerá até que ele mesmo decida seu futuro. Seu nome não seria outro senão Jorge Feijão, numa casa onde senhorio e filho dele, além de um de seus moradores são Jorges. Mr. Bean, caso ele fale inglês.
Tudo isso merece uma filosofia das mais baratas:
Por mais que cozinhemos e consumamos os alimentos, eles reaparecem, reproduzem-se e continuam a nos alimentar. Ainda há espaço e tempo para plantar e acabar com a fome mundial e...
Teresópolis, 8 de outubro de 2009.