Zelador

Minha foto
...de repente, o que está aqui lhe apetece.

Seguidores

quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

CATA LIXO


Veio um ventinho esquisito no fim de uma tarde de verão. Resolvi por uma blusa de manga comprida, mas mantive a bermuda. Partiu supermercado!

O lixeiro não havia passado. Os sacos estavam revirados; rasgados pelos cachorros e meticulosamente abertos pelos seres humanos. Em frente a uma das escolas de minha vizinhança um tipo de lixo, infelizmente comum, que poderia reciclar mentes: livros. Junto de armários e estantes quebradas ou velhas, livros.

Uma rápida olhada, uma titubeada, uma olhadela nos títulos. Mansfield Park, Jane Austen; um sobre Emily Dickinson, dois de autores que não os conhecia, um da Pearl S. Buck em inglês. Encartes e capas da enciclopédia Conhecer e dois atlas também em encartes. Foi o que vi por alto até afastar um e outro volume e achar A História da Filosofia, de Will Durant.

Este exemplar, junto com O Mundo de Sofia e a República, de Platão, me levaram a gostar de Filosofia e a salvar-me da decepção que tive no primeiro período da faculdade quando meu então professor, uma lástima, não me fez saber do deleite que era a Filosofia. Uma reprovação em sua matéria (por não ter respondido corretamente o “Dasein” de Heidegger) foi fundamental para que, no semestre seguinte de 1996 pudesse gostar de Filosofia por causa dessas indicações.

E ali, no chão, na calçada, entre uma moita de coroa-de-cristo, (Euphorbia milii), um livro que foi importante para mim e haveria de ser para outrem. Peguei-o e o levei comigo para as compras pensando em quem poderei presentear com ele. E, se algum curioso ficasse mirando o livro em minhas mãos, este seria o escolhido para levá-lo, com a seguinte dedicatória: “Caro(a) desconhecido(a) (nome dele ou dela), aqui vai um presente do acaso. Feliz 2014.” Data e meu nome.
Esta  a edição achada


Somente um mendigo da praça me olhou e pediu o cigarro que portava. Entreguei-lho.

Fiz as compras e esperava que a moça da caixa registradora tivesse alguma curiosidade sobre o livro, ainda que pensasse se tratar de um produto do estabelecimento. Se ela fizesse isso levaria o livro. Não o fez. Guardei-o junto com o saco de pães e voltei para a casa. Talvez pegasse mais um livro daquela fonte. A alguns metros via um homem, aparentemente com seus 45 anos, agachado, com uma camisa que simulava um time de futebol americano, número 89. Aproximei-me e falei:

- Que triste maravilha, não?
Ele virou o pescoço e disse:
- Cara, olha só. Não pude deixar de pagar alguns. Veja, um em francês. Minha sogra lê francês.
- Eu peguei este aqui. Embora já o tenha lido não poso deixar esta edição aqui.
- Este também li, há muito tempo. Olha esse aqui, cara. Um livro do Museu Imperial, altas fotos. – Levantou-se. Seguíamos para mesma direção.

Paramos e folheamos o do livro de fotos do museu. Depois, andando, ele começou a comentar:
- No último edifício que morei, no Jardim Botânico, aumentei minha biblioteca com muitas raridades.
- Cara, isso é comum, sempre havia centenas de livros incríveis na lixeira do prédio onde minha avó morava, em Copa.
- Ih, lá é um paraíso. E de discos também. Uma vez achei uma coleção inteira de Monteiro Lobato. Leio para minha filha de 6 anos.
- E minha tia que tem toda a Comédia Humana de Balzac adquirida num “desmanche” desses. Sempre estes “velhos” livros são bons, inclusive os científicos.
- Pois é. Eu sou biólogo, e uma vez achei muitos livros do início do século passado. Aí meu filho de 21 anos disse “para que isso pai, as coisas já mudaram”. Mas justamente por isso, falei para ele, é importante vermos a evolução das coisas, das ideias, das experiências e tal. Além de percebemos que usamos algumas coisas ainda do século XVIII.

Depois de alguns segundos e metros, ele falou, com uma voz lamentosa.
- Livros no lixo...
- É constrangedor. – Complementei.
- E quais argumentos poderemos utilizar para defender um país que ainda joga livro no lixo.
- Moro aqui. - Cheguei ao portão de minha casa. Apresentamos nossos nomes e ele mostrou onde mora. Logo ali.
- Abração.
Petrópolis, 18 de dezembro de 2013.





sábado, 7 de dezembro de 2013

VIAGEM À TERRA


Esta é clássica e vale um relato:


Uma homenagem a Ray Bradbury e a Jaime Guimarães.


Eles iam para o Novo México - EUA, terra conhecida deles nos últimos anos terrestres. Mas começou a ratear o motor da aeronave Grainat, acharam que era o atrito com a atmosfera, mas na verdade pode ter sido logo na entrada da atmosfera.

- Te falei, Plinx, para entrar na atmosfera da Terra tem que ter as manhas.

- Pô, Comandante Letzon, eu entrei certinho, mas é que pegamos um som do Pink Floyd, A Saucerful of Secrets, numa estação de rádio, aí me desconcentrei. Já ouviu?

- Cara, não se pode errar em uma viagem como esta! Vamos para Rosewell, lá a gente vê o que se pode fazer.

- Já passamos de lá, - disse Plinx, temeroso - nos resta Cuzco, caminho antigo. Eu sei que devia ter virado à esquerda em Albuquerque. E estamos longe de Teresópolis... e do Novo México!

- Você está maluco, Plinx?  Vamos para a Sibéria então, lá é menos quente.

- Passamos de lá também, quando derrapamos na escrotosfera. Peraí, xô dá uma quebra de asa aqui e... opa, vamos ter que parar. Vou deixar na banguela e ir suave.

Letzon espalma a mão em sua testa com violência e se lamenta em voz audível para Plinx:

- É Estratosfera, Plinx! Que mal fiz a Hunx (Deus)? Já dizem que não somos um planeta... Meu Hunx, o que será de Plutão agora? Estes terráqueos jamais entenderão nossa magnitude no sistema solar. Era para ser uma missão simples, Plinx!

- Calma Let (íntimo do capitão), aqui nessa área há bons mecânicos, vamos consertar isso tudo, deixa comigo. Eu tardo mas não falho.

O céu brilhou por 4 centésimos no tempo terrestre. Plinx se exaltou num misto de alívio e alegria:

- Olha lá, comandante Letzon, uma oficina!

- Onde?
- Ali ó: "Consertamos Disco Voador"...
- Seu filho da mãe, hehe, eu sabia que aqueles seus estudos de línguas terráqueas valeriam de alguma coisa. Vamos, pouse lá.

E pousaram em frente à humilde oficina. Era domingo. " Vai lá, Plinx, vc que sabe a língua deles". Plinx teve que ir. Começou com o discurso tradicional de que vinham em paz, mas queriam só consertar a Grainat. Saiu da oficina um senhor, que saía de seu sono. Apresentaram-se. "Prazer, esse aqui é o comandande Letzon, sou Plinx. "

- Taaarde... cumpádi. Magela, Geraldo Magela. Diz o problema, seu Plinquis.

Plinx sentiu alguma dificuldade no linguajar, porém anunciou o problema enquanto se encaminhavam para a Grainat e abria o compartimento do motor.

- É que quando a gente transpunha a atmosfera começou a ratear, não engatava as velocidades terrenas, você sabe como é. A gente ia para Rosewell, mas...

- Tô sabendo, vocês entraram pela Sibéria, né? Ali é difícil, é quente.

- É.

- Já sei o que é. - Magela, sobre a porta do compartimento do motor, observava com olhos sidero-mecatrônicos aquele caos. 

Cofiou a barba mal feita, expirou forte e pediu para um deles ir à cabine. Letzon assumiu essa tarefa.

- Então, quando eu disser "vai" você liga a nave, tá bom?
Plinx traduziu para o comandante e ele teve que aceitar a mudança de função.
- Então... péra um bocadinho... isso... agora. Vai!

A Grainat foi ligada, mugiu um pouquinho, tossiu, emitiu sons metálicos, os cachorros a redondeza latiram. Magela puxava um fio, apertava um e outro botão, raspava o dedo em um sensor desconhecido para a humanidade. Sai de repente e alertou:

- Continua, continua!
E a barulheira deu lugar a um som aveludado da Grainat. Era o som perfeito da aeronave. Agora podiam viajar o universo inteiro.

- Quanto é, Geraldo Magela?
- Nada não, isso é coisa simples. Mas ocês vão para onde mesmo?
- Rosewell.
- Ah, sim, Olha, pode ir tranquilo. O tempo está bom para lá.
- Mas Magela, aceite então um agrado - disse Plinx. Tome esse "trem" aqui.
- Nem precisava, seu Plinquis. Vão em paz, é a missão de vocês né? Sempre paz. Mas aqui entre nós não tem muito disso não, bem raro. 
Adeus seu Letição!
Plinx entrou na nave e Letzon acelerou para cima, sumindo no céu.


quarta-feira, 27 de novembro de 2013

ROMÂNTICO

DIA ROMÂNTICO, POR QUE NÃO?



Era fim de outono, início de junho. O dia ensolarado, apesar de frio, chamava para um passeio na cidade, um chocolate quente com torradas e quem sabe um cinema. Aqueles dias que lá pelas cinco e meia, quinze para as seis os postes anunciariam a chegada precoce da noite.

Os pais dele viajaram e deixaram a casa, pelo menos até sábado, só para eles. Era a oportunidade de desfrutar da casa como se fossem um verdadeiro casal. 

Chegaram do cursinho pré-vestibular. Ela, eufórica por a mãe ter deixado passar o dia, quiçá o fim de semana, na casa do namorado, foi logo para a varanda elogiar o astro-rei que iluminava a mata e aquecia, mais ou menos, o ambiente. Ele chega abraçando-a carinhosamente, por trás e pergunta sem vontade de ter uma resposta positiva.

-Vamos dar uma volta, almoçar fora...? – e não quis dar mais opções, queria mesmo era ficar em casa, quieto.

-Vamos... para onde? Tem o Café Bonjour...

-Vamos ficar aqui mesmo! – interrompendo – a gente fica abraçadinho lá em baixo, na televisão, curte um filme... -  e não permitiu mais sugestões.

Ele vestiu uma calça de moletom vermelha, meias brancas, combinado com a camiseta Hering de mangas compridas. Foram para a cozinha, enquanto ele abria a geladeira e pegava uma garrafa de água e outra de guaraná e mais dois pacotes de fandangos; ela fazia um brigadeiro, poupando a empregada do serviço. Estava decretado o dia de bode, quando não se faz nada além de nada. Romântico, por que não?

-Levo copo? Pergunta ele.

-Não, bebemos no gargalo mesmo.

Ele vai para a sala de televisão. A casa somente deles. A empregada só apareceria se solicitada sua presença. A avó, que foi para o grupo de conversação em inglês, só voltaria mais a noite se não resolvesse engatar madrugada adentro jogando canastra com o mesmo grupo. A velha resolveu ser mais ativa depois de viúva.

Ele liga a televisão e deixa no canal que está. Vê se tem algum filme em vídeo ou DVD que se encaixaria no momento: Rambo – Programado para matar, Pepino de Capri, ao vivo em Nápoles, 9 e 1/2  semanas de amor. “Hum... será?” – Pensou, mas resolveu deixar para outra ocasião. A Bela e a Fera, Titanic... “ah...vamos ver se na tv tem algo melhor”. Deixou as bebidas no pé da mesa, arrumou uma almofada e ali encostou sua cabeça deixando seu corpo estirado no grande sofá da sala. Neste cabem os dois com folga.

Ela chega com o prato de brigadeiro. Um camisão do Snoopy e meias estampadas. O uniforme que ela deixou um dia na casa dele para estas emergências.

-Espera um pouco que está quente. – Ela alerta.

Ele faz sim com a cabeça demonstrando o sono que estava por vir, querendo esquecer a dor de cabeça que aquele Domecq ajudou a criar ontem, no aniversário do Gil.

-Deita aqui, gatinha, daqui a pouco a gente come, está com fome?

-Mas que cara, hein mozão? Quantas cervejas você tomou ontem no Gil?

-Três.

-Só?! E você está assim?... duvido!

-Sim, foram só três cervejas, é que... rolou um Domecq lá... aí já viu, né? – falou com uma voz titubeante não querendo denunciar o coitado do conhaque.

-Cruz credo, toma cuidado, viu?

-Cuidado? Ainda não tomei, é da boa essa bebida?

-Engraçadinho, que piadinha mais batida essa? – Foi se deitando ao lado dele pegando o controle. O dia estava para a paz, não haveria discussões. – Que você quer ver?

-Ah, gatinha, vai rodando aí – diz ele pouco se importando com o que veria. O sono era mais forte. cinco e meia da tarde, é a hora mortal para qualquer indivíduo que esteja num sofá, é sono na certa.

Ela começou o tour pelos canais:

Discovery Channel. Uma voz baixa, em inglês, do apresentador, seguida de uma dublagem em português, mal feita:
(However, during the dawn... Entretanto, durante o nascer do sol, os lêmures já despertam em busca de seus alimentos...) ZAP!

Algum canal de esporte. O Narrador: “Bola para Chagas na direita, bem marcado joga mais atrás com Paulinho, vai ser obrigado a voltar pro goleiro”.
Neste momento ele abre um pouco os olhos, percebe que é o video-tape do jogo de quarta e volta a seu início de sono. Ela muda rapidamente com medo dele gostar do jogo. ZAP!

CNN Internacional. Actually, Arafat and Sharon will not reach to an agreement for the Hamadah group does not accept any kind of conversation... ZAP!

Music Television. Pega o fim de um clip da Britney Spears e espera a apresentadora anunciar o outro vindouro... “Agora com vocês, o terceiro lugar de hoje Titãs, com ...” ZAP!

Ele se revolta por uns segundos.

-Pô, gatinha, deixa lá, Titãs é maneiro.

-Dorme aí, mozão.

TV Cultura. Uma entrevista: “...e com este investimento, daríamos melhor condição para que, a partir do próximo trimestre, as empresas possam respirar e assim satisfazer os investidores internacionais,” ZAP!
Outro canal de esporte.  “I can´t believe in my eyes, Michael Jordan is on fire tonight!” ZAP!

-Ai, mozão, não tem nada para ver agora. – Reclama, com uma vozinha fina de começo de choro. A resposta dele foi um ronco.

-Mozão!!

Ele a abraça e a põe deitada na frente dele para descansarem.

-Me dá o controle! – Passaria a tomar o controle do controle dos canais e ainda faz um comentário que se fosse em qualquer outra situação começaria uma peleja muito violenta. - Mulher quando tem muito poder dá nisso. Ê indecisão!

Ela riu... de pena. 

Botou no canal de um filme qualquer. Robert de Niro, Taxi Driver “Are you talk to me?” E vibrou.

-Putz, na melhor cena! – Mudou para o outro canal de filme.

Ela pegava a primeira colherada de brigadeiro.

-Já está morninho, quer?

Ele fez que sim com a cabeça sem tirar os olhos da tela. Era Sociedade Dos Poetas Mortos. Lamentou estar no fim. “Oh capitain, my capitain! ... Oh capitain my capitain!”

-Adorei este filme, confesso que chorei nesta hora. - E abocanha a colher que está em sua frente, quase nos lábios, dada pela namorada.  E elogia. - Nossa, gatinha, que brigadeiro gostoso. Já podemos casar! – Brincou, mas ela levou a sério e no futuro usaria essas palavras em alguma discussão.

A camisola do Snoopy já não impedia que o frio subisse por suas pernas, logo adotou o cobertor até então usado somente pelo namorado. Ele abriu a garrafa de guaraná, deu uma golada e pegou um punhado de fandangos. A preguiça fez com que ele comesse na horizontal mesmo. Mas beber foi mais difícil e derramou no sofá algumas gotas. Ele que aguentasse a bronca quando a mãe descobrisse. Deixou na MTV de novo.

-Vai ficar aí mesmo, a gente só fica ouvindo, de repente passa uma música legal, né gatinha?

-Ela concordou e se virou para ele para darem um beijinho gostoso, até um pouco demorado. Eles se amam, mesmo. Só assim para suportarem um beijo que mistura brigadeiro e guaraná, com vestígios dos fandangos. Os dois depois foram à procura da água, imediatamente.

A empregada aparece no início da escadaria e avisa lá embaixo:

-Já estou indo, Rafa! Quer alguma coisa?

-Ô Dona Alda, vai com Deus, quero nada não. Você quer gatinha?

-Não.

-Pode ir Alda, o dinheiro da passagem tá na mesa de mármore.

-Já peguei. Então tá, Rafa, até amanhã. Até amanhã, Bel. Tem bolo de laranja na mesa da cozinha se vocês quiserem.

-Até, Dona Alda. Vai com Deus. Muito obrigado.

Voltam a se concentrar naquilo que esqueceram que estavam fazendo. Abraçaram-se e encararam a tela novamente. O frio aumentava, mas com o calor dos dois sob o cobertor não percebiam a queda da temperatura.

-Olha a música, mozão!

-Estou ouvindo, gatinha.

Era "Fala Mansa" tocando a música deles quando se conheceram. Naquele dia, ele havia mentido se passando por um professor de forró e ela acreditou; naquele dia não dançaram, pois ele alegava só dançar profissionalmente. Até hoje não deram um requebrado dançando forró.
Beijou-a na bochecha. Ela sorriu e retribuiu o beijo. E curtiram o dia escurecer.

Petrópolis, abril de 2002


domingo, 6 de outubro de 2013

O COMERCIAL QUE WOODY DEVERIA TER ESCRITO E DIRIGIDO

COMERCIAL DAS MARGARINAS “SOL NASCENTE”

12 de janeiro de 2012 às 00:23
   
DIREÇÃO: WOODY ALLEN (aguardando convite)
ROTEIRO: THIAGO QUINTELLA DE MATTOS
IDEALIZADOR: ORLANDO STIEBLER

Personagem (ator/atriz):
Benjamin Grimbaum (Woody Allen): Professor de História da Arte aposentado pela Universidade de Princeton, que se dedica criação de duas vacas leiteiras e algumas hortaliças e frutas em uma pequena chácara nos arredores de Albany, NY. Desde que se aposentou saiu do caos de Manhattan, vendeu sua casa em New Jersey e lá vive com sua terceira mulher.
Woody











Rita Lorenzo Grimbaum (Penélope Cruz): Terceira esposa e ex-aluna de Ben. Artista Plástica paradoxalmente naturalista e consumista. Católica devota, mas teve que largar um pouco a ortodoxia cristã por amar seu ex-professor e atual marido. Seu maior problema é o mal estar de viver na chácara de Albany com a enteada.
Penélope













Rachel Schelmann Grimbaum (uma atriz loira que ainda ninguém conhece, mas Woody sabe de seu talento): apesar de seus 21 anos, comporta-se como uma pré-adolescente, cuja mãe, Sarah (Tracy Ulmann) não aguentou criá-la e exigiu que Benjamin tivesse a guarda da filha. E conseguiu.
Atriz loira que ainda ninguém conhece













Ambiente: a cozinha da chácara, 9:40, sábado. Ben acorda feliz e disposto, e por último. Filha e esposa estão na cozinha. Rachel come ansiosamente, saboreando tudo. Rita acaba de fritas os ovos e os põem no prato de Ben, que antes de se sentar dá um beijinho na esposa. Ele procura o pote de manteiga e não o acha.
Fade In

Benjamin: Onde está a manteiga, Rita? (ameaça se levantar para procurar o pote, mas a esposa lhe impede, pedindo para se sentar).

Rita: Não ficou pronta, esqueci de preparar anteontem, então, comprei Margarinas Sol Nascente, para o nosso café da manhã.

Benjamin: M-m-mas, você ficou maluca? Perdeu totalmente o juízo? Rachel (vira-se para a filha que parece estar em outro mundo), filha você ouviu isso? Sua mãe está me oferecendo margarina. É isso mesmo que eu ouvi, será que não acordei ainda? Estou sonhando... ah sim, estou sonhando. Bom, vou esperar, me forçar a acordar para eu realmente acordar.... hummmm. Ok, agora sim, creio estar acordado. Rita, por favor me passe a manteiga que minhas torradas e-e-e meus ovos mexidos estão esfriando.

Rita: Mas você ainda nem provou, Ben. É quase a mesma coisa...

Benjamin: O quê? O-o-o quê você está me falando? Rachy ouviu isso, Rachy? Rachy, seu pai está falando com você! Você ouviu isso, está com aqueles negócios nos ouvidos? Rita, eu não vou comer isso! Pode... para para! não passe este veneno em minhas torradas, para Rita! Anos querendo fabricar minha própria manteiga, em minha própria chácara e.. não, não, definitivamente não!

Rachel: Está muito boa, papá.

Benjamin: Como é que é? Vo-vo-vocês sabem que a diferença da margarina para o plástico é de uma molécula? Umazinha só. Por que não comem plástico? É, isso, gostei, comam plástico a partir de agora, porque eu não comerei e-e-esta, esta... isto aí. É como se eu passasse a jogar fora os hambúrgueres e o refrigerante das lanchonetes fast-food e comesse suas embalagens, se bem que (reflete e se distraí. Rita já com a torrada besuntada da margarina tenta empurrá-la goela adentro de Ben), se bem que seria até mais saudável... Rita, o que você está fazendo, baby, amor, pare! (É calado pela torrada com margarina embora ainda tente falar alguma coisa de boca cheia).

Rachel: Uhaha! Papá, você é engraçado.

Rita: Isso, Ben, gostou?

Benjamin: Isso é realmente margarina? V-v-vocês não estão me pregando uma peça? Rita, por favor, eu acordei bem, mas isso não quer dizer que eu esteja para este tipo de piadas logo na minha manhã de sábado. Qual é o nome disso? Ahn? huh... hummm muito boa... Sol Nascente. Eu ainda não acredito que isso é margarina, passe-me mais torradas Rita, eu quero ver se é realmente margarina.

Corte para Rita e Rachel que aparecem em primeiro plano, com o pote da margarina sendo mostrado destacando a tampa do produto. Em segundo plano, meio fora de foco, Benjamin passando a margarina Sol Nascente em todos os alimentos que encontra na mesa e pela cozinha.

Slogan: Rita e Rachel falam juntas: “Margarina Sol Nascente, mais brilho para suas manhãs”

Arremate: Benjamin, falando sozinho: eu ainda acho que isso é a minha manteiga!

Fade Out

domingo, 22 de setembro de 2013

CAMURÇA – O OURIÇO SUSSA



Na última viagem da casa antiga para a nova era a vez de levar os cachorros, três terriers brasileiros (ex-fox paulistinha) e uma poodle preta-cinza. Só um deles, o Gilmar, o mais novo, que instalou um inferno dentro do carro, a ponto de minha mãe rezar para São Francisco. Isso foi pouco antes das dez da noite.

Chegamos junto com o caminhão e enquanto eles começavam a descarregar eu prenderia os cachorros, um de cada vez, em cárcere específico arranjado na casa. O primeiro, claro, foi o Gilmar. Cruzei toda a casa e o deixei lá, com água e comida, e retornei ao carro para pegar outro cão. Fui por um corredor do lado da casa, que culminaria no portão, passando por um pequeno canteiro da frente da casa. Ali, vi um bicho cinza tentando escapar numa lentidão de dar dó. “Putz, A Maria Augusta (a poodle) fugiu do carro”, pensei. “Não, é um gambá!”, repensei. Tentei enxotá-lo mas o bicho não tinha para onde fugir, refugiou-se, pois, num dos arbustos, eriçando o que pensava ser os pelos. Passei por ele e fui para o carro pegar outro cachorro; cuidaria daquele marsupial depois.

Na volta, o bicho estava em cima de um parapeito no afã de beber a Fanta Laranja que eu e os caras da mudança deixáramos ali inadvertidamente. O suposto gambá já havia atraído a atenção deles. Aí que eles me corrigiram:
- Isso não é gambá não, é ouriço. Fica muito bom ao forno, com batatas.

O cuidado no transporte dos cachorros aumentou. Ouriços são os alvos preferidos dos cães e tirar os espinhos é uma árdua atividade. Aprisionados os cães, fui resolver o problema do ouriço. O vagaroso mamífero acabava de derrubar um copo e tombaria a garrafa para provar daquele xarope. Foi quando fiquei a dois passos dele e disse:

- Qualé gambá? Tu não vai arrumar nada aí, meu cumpádi.

E veio aquela voz mansa, despreocupada, exibindo um pouco de surpresa:
Parecido com o Camurça


- Ih, olha o cara, véio. Me chamando de gambá, aê. Não fala coisa que tu não sabe, meu brother.
-Tá bom, seu erináceo. Mas você terá que se retirar. Estamos com uma mudança pesada aqui.
- Calma aê, mano, deixa eu só dá um trago desse drink aqui, me pareceu bem doce. Ah, antes que eu me esqueça, sou Camurça, o Ouriço Sussa.
- Camurça, sensacional! Achei que fosse Sonic.
- Pois é, malandragem, a galera não alivia nos apelidos. Sonic é meu primo japonês, mais velho. Ele curtia outras paradas, por isso aquela velocidade, tá ligado? E qual é sua graça, amigo?
- Thiago.
- Então, Thiago, vai deixar eu dar um gole neste néctar aqui do lado?
- Ô Camurça, vou fazer o seguinte: derramarei um pouco ali na calçada, você bebe, lambe aquilo lá e depois siga seu rumo, beleza?
- Podicrê. 

Camurça fazia pose para as câmeras dos celulares do pessoal da mudança. Eu levava o resto de Fanta para a calçada quando, pouco depois, ele falou:

- Aí, outra coisa, meu nobre, tu não arranjaria um cigarrinho para mim não?

Pedi um Derby para um dos caras, acendi-o e entreguei ao Camurça.

- Toma, vai lá, mete o pé depois, vai viver lá na sua floresta.
- Enquanto ainda tem, né parceiro? – E rebolou no andar para a calçada.
Esboço do Camurça em sua despedida


Camurça, o Ouriço Sussa, tinha razão: “enquanto ainda tem” um pouco de floresta. Fui arrumar algumas caixas. Quando voltei, só vi um rabo sumindo atrás de uma árvore do outro lado da rua, e uma fumacinha subindo.

Petrópolis, 22 de setembro de 2013.


segunda-feira, 2 de setembro de 2013

DEDICATÓRIAS FANTÁSTICAS


Sigmund Freud, humildemente, pediria a Sófocles um dedicatória em seu exemplar de Édipo-Rei 


Ao meu amigo Sig,
Espero que possa aliviar um pouco sua cabeça de seus intensos estudos
sobre o comportamento humano com esta pequena obra de minha arte.
Abraços
 
Sófocles 


















Cervantes, recebendo uma edição de Dom Quixote das mãos de Dostoiévski para que este receba a dedicatória: 

Ao meu nobre Fiodor, Camarada Dasta!
Cá estão algumas desventuras e aventuras de um fidalgo e seu fiel escudeiro e mais algumas coisas que acontecem na vida. Loucas sabedorias!
 
De seu amigo
Miguel 
(Dostoiévski afirmara em uma entrevista que Dom Quixote é a obra que resume a vida) 




Neil Armstrong e Buzz Aldrin, cada um com uma edição de Viagem ao Redor da Lua, de Júlio Verne, entregam-nas ao escritor para receberem a seguinte dedicatória: ( O coitado do Michael Collins sofreria mais uma desilusão)

Neil (Buzz),
Isto é uma história, ficção, arte...
mas os homens podem evoluir tecnologicamente a façanha que aqui narro.
Espero que aprecie esta aventura.
Cordialmente,
 
J. Verne 

Rio de Janeiro, 27 de abril de 2005.

domingo, 25 de agosto de 2013

POESIA

VÃO (EM) POESIA
Por alguma beleza estavam juntos, não sabem se forçados, se por experiência, por aventura, por idiotice... mas por beleza sim. Por amor, não, quem sabe em um deles, por átimos esparsos durante sei lá quanto tempo. E por quanto tempo estavam naquele quarto? Um dia e meio, quase dois?

Ele a desabraçou cuidadosamente quando acordou, queria ir ao banheiro. No silêncio possível, levantou-se da cama, desistiu dos chinelos, apesar do chão frio; foi até à porta do quarto e a abriu numa lentidão de sorrateira, do mesmo modo a fechou. No banheiro, acendeu a luz; evitou que o jato atingisse a água da privada. Lavou as mãos, bochechou com um produto especial, bebeu água da torneira, rapidamente. Tossiu. Os pés ficaram mais gelados e sujos apesar do carpete marrom e demasiado empoeirado. Pensou em pegar um copo d’água para ela. Na cozinha, pegou uma garrafa, levou um copo. Ainda tinha meia garrafa de vinho. Não aguentou nem olhar. O vizinho ouvia um rock progressivo.

Retornando ao quarto, no mesmo processo silencioso, ele a viu dormindo, na mesma posição que a deixara. Fechou a porta e foi por instinto, no breu, até à beira da cama. Deixou a garrafa no chão, o copo ao lado da luminária. Pensou em se deitar, mas apenas se sentou à beira da cama. O breu se enfraquecia com a fraca luz azul clara que vinha das frinchas das venezianas; um azul que deflagrava um fim de tarde nublado e mais frio que o dia anterior, ou o mesmo dia só que manhã. Ele gostou daquele cenário, daria um bom curta-metragem, baseado em algum conto de Cortázar, sacado do “Jogo de Amarelinha”. Ou de uma poesia de, de... Droga, ele não sabia bem dos bons poetas apesar de amar alguns poemas de Drummond, Rimbaud, etc. Em um lapso de comédia, originado por suas incertezas mais absurdas ou incoerentes, poderia pensar que aquilo ali tudo seria de Dante ou Edgar Allan Poe. Pensou nos textos que tinha que escrever para a semana seguinte. Tateou cigarro e isqueiro na mesa de cabeceira, sujou suas mãos no cinzeiro que havia levado para lá e não se lembrara. Bateu seus dedos na perna, pegou um cigarro e acendeu. O maço estava em cima de uma edição de “A Servidão Humana”, de Somerset Maugham. Curvou encostando os cotovelos próximos aos joelhos. Luzes e estalos da brasa e cheiro da fumaça pode tê-la acordado.

Ela se vira com um delicioso e ingênuo gemido. Ainda com muito sono, sussurra que quer um trago. Ele a espera se sentar na cama, com as costas apoiadas na parede. Também queria água e pediu para que ele buscasse.
- Já peguei, está aqui.
- Ah, que bonitinho.

Deu uma tragada. Ele lhe entregou o copo e pegou o cigarro de volta. Ela bebeu quase todo o conteúdo e lhe ofereceu:
- Quer?
- Não, já bebi.
- Você não bebe quase nada de água. Bebe, garoto!
- Já bebi... tá bom.
E bebeu o resto. Perguntou-lhe.
- Quer mais?
E respondeu, em negação, só com dois secos sons guturais. Pediu mais um trago com as mãos. Um minuto de silêncio.
- Que horas são? - Ela pergunta esperando uma hora inacreditável.
Ele pega o celular:
- Cinco e meia.
- Da manhã?
- Da tarde, acho que de sexta-feira já.
- Caramba, tenho que me encontrar com minha mãe. – Devolve o cigarro e volta a cochilar.

Bateu nele um receio de falar o que pensava. Passara de uns tempos até ali com estes receios. Falou que aquela cena seria um bom curta-metragem, ou um conto. Um riso seco e sonolento foi a resposta. Decidiu que não escreveria sobre aquilo senão no estilo de Charles Bukowski. “Não, melhor não”, refletiu. “Sim, claro que posso escrever sobre isso! Um escritor há de correr seus riscos com a exposição de todo seu pensar no papel, linha sobre linha. Escrevo sobre o que eu quiser e este é o risco de nossa arte!”. Refletiu novamente, não sabe se pior ou melhor. O cigarro acabou e amassou-o no cinzeiro.

Deitou-se, cobriu-se. Pôs o braço sobre a nuca dela. Ela se aproximou, pediu cafuné para lhe ajudar a dormir. “A dormir?”, ele pensou em revolta. O sabiá cantava forte não muito distante. Isso a irritava e, não obstante, ele a amava.


Itaipava, 25 de agosto de 2013.

domingo, 5 de maio de 2013


FEIJÃO: DO COZIMENTO AO PLANTIO

- Aí, vou fazer um feijãozinho pro nosso almoço.

 Comunicou-me o Jorginho, colega de casa. Além do feijão, arroz e uma farofa bem incrementada de farinha e sal. O alho triturado em nosso triturador manual giratório ficaria dividido para o arroz e o feijão. Nosso café da manhã tinha sido só café; e vinha sendo isso nosso alimento até ele decidir fazer o almoço.

 Achei que ele tivesse me convocado para cozinhar esta tradicional iguaria de nosso país. Faltava isso para eu me certificar um brasileiro. Já fiz samba e sambei; já joguei futebol que, em determinado período, até que o fiz bem; elaborei muitas caipirinhas; sei de quem sou filho na religião das forças da terra. Entretanto, jamais havia me motivado a fazer um feijão embora soubesse que, cedo ou tarde, haveria de fazê-lo.

 Não foi dessa vez. Ele somente me comunicou. Assumiria todo o fazimento de nossa principal refeição do dia, digo, da semana. Continuei o que fazia, escrevia enquanto conversávamos em dois diferentes ambientes: ele na cozinha e eu no meu quarto. Preferi, depois, dispor-me a ajudá-lo, em prontidão, sentado à mesa da cozinha, bebendo café e fumando.

A panela de arroz estava esquentando. Ele escolheu uma das penelas de pressão que a casa oferece, a mais detonada das duas detonadas que tínhamos naquele então. Reclamou que as panelas antigas não vinham com o medidor de volume d’água e que teríamos que ir pelo olhômetro. Teríamos? Nós! Quer dizer que estava oficialmente incluído na empreitada. Senti-me honrado e necessitava recordar alguns de meus conhecimentos empíricos adquiridos em anos de despretensiosas observações. Permaneci sentado, no entanto.

Um simples corte na ponta do saco de feijão deu o duto para os grãos serem despejados naquela quantidade tal de água. Havia uma confiança extrma naquela marca de feijão a ponto de desprezar a seleção dos grãos defeituosos e eliminá-los. Uma pequena dificuldade natural para fechar a panela, enfiar o pino em seu local apropriado e levar a mehlor parte de nosso almoço ao fogo. Emprestei meu isqueiro para acender fósforos já queimados os quais haviam sido guardados exatamente para essa função. 
Tudo isso ocorreu pouco antes das dez horas da manhã, desse modo, restou-nos esperar o vapor ser liberado sensivelmente pelo pino e deixar os grãos cozinharem à vontade. Cada um foi para seus respectivos aposentos para outros afazeres. Eu pus música no computador, ele foi ver televisão. Em não menos de dez minutos reaparecemos à cozinha, juntos, com olhares de preocupação e dúvida, alternando-os para a panela e para nossas faces. O vapor que deveria sair não saía, de lugar nenhum. Ele estava ajudando a panela a trepidar; perigo!

 Nossas hipóteses pululavam tais quais os feijões: “o que estava errado?” “Deve ser muita água”, “o pino pode estar entupido”, “ainda não deu tempo para ele funcionar”, é a quantidade estúpida de feijão que pusemos!”. Ficamos com essa como a mais crível. 


Sabendo que a culpa era nossa embora não a assumíssemos verbalmente, culpamos a panela. Contudo, mesmo apagando o fogo, havia o risco de explosão durante o caminho do fogão à pia e, também, o da abertura da panela. Soube, mediante o cinismo dele, que era a primeira vez que ele assumia o comando de uma panela de pressão. Evitarei transcrever os palavrões de minha revolta aqui. Fiquei, além do mais, decepcionado. Nessa hora, todo nossos conhecimentos tiveram que se unir para evitar a tragédia. Mas ao pegar a panela, ela já estava bem mais calma, menos saltitante, bom sinal. Eu juro que nesse momento tocava “Smoke on the Water”, do Deep Purple, mas não desejava “fire in the sky”, fogos no céu, não.
Ainda durante o processo de amenização do comportamento da panela, lembrávamos, mentalmente, do histórico de acidentes horríveis ocasionados por maus usos da panela de pressão. Coisas que fazem parte do folclore de toda criança. Ele começou a expor suas reflexões:
- Pô, minha mãe disse que se isso explodir... 
- É – interrompi – minha mãe também tem uma vasta gama de relatos trágicos em acidentes com essa p...

 E o maior risco era nós não estarmos vivos para contar mais um capítulo dessas tragédias, mas faríamos parte dos casos trágicos. 
- É só levar a panela à pia, - eu disse - deixar cair um filete de água permanente, se possível, e abrir bem devagar. – Foi uma instrução que passei baseada na pura fé. Nada aconteceu. 
O próximo passo foi achar a outra panela. Eram duas panelas e uma tampa. Completamos o outro conjunto, tiramos quatro conchas cheias e depositamos em uma panela ordinária, a fim de diminuir a quantidade de feijão. Descobrimos alguns grãos mutantes, outros de diferente espécie e até um que estava envolvido em papel vegetal, daqueles que serviam para fazermos mapas e que envolvem algumas balas; um grande achado para nós, uma ridícula descoberta para a humanidade. Na tampa da primeira panela, morreram alguns grãos.

 À segunda panela, bem mais bonita e confiável, foram despejados os grãos remanescentes, que ainda eram muitos, da ordem de 103. Água em mais humilde quantidade e fogo de novo. Garanto que nos sentíamos mais experientes após as primeiras adversidades. O arroz, nesse desesperador ínterim, estava pronto.
Xic, xic, xic. E o pino girava alegre e veloz, como manda o figurino e sua conveniência. Aquele barulho da infância, da cozinha antes do almoço; o chiado que povoa a mente da maioria dos brasileiros. Relaxados, fazíamos piadas e rememorávamos fatos bons do cozimento do feijão no decorrer de nossa história. Era só prestar atenção no vapor. Farofa feita. Houve até uma dramatização cômica quando deduzimos que o feijão estava pronto e abriríamos a panela. Dali para o prato, só satisfação. Sobrevivemos.

O feijão foi o almoço, o jantar, o almoço do dia seguinte, o café da manhã de outro e, depois do fim de semana, ainda rolou um caldinho. Ainda temos muito que aprender, obviamente. Mas não nos explodirmos ali foi uma grande e satisfatória experiência. 

O caldinho veio na noite de segunda-feira. Nem precisou de sal.  Organizamos a pia após lavarmos a louça. A lua, surgindo da montanha, minguando, nos deu um espetáculo. Mas embaixo da janela da cozinha que dá para a varanda nasceu um feijão, um broto de feijão, sem o artifício do algodão no potinho de iogurte. Acreditamos que o bicarbonato de sódio, que um dia o vento espalhou pela pia, e a a´gua corrente que de algum canto mina ali, foram seus fertilizantes. Outra hipótese cientifica que elaboramos. Ali este broto permanecerá até que ele mesmo decida seu futuro. Seu nome não seria outro senão Jorge Feijão, numa casa onde senhorio e filho dele, além de um de seus moradores são Jorges. Mr. Bean, caso ele fale inglês. 

Tudo isso merece uma filosofia das mais baratas:

 Por mais que cozinhemos e consumamos os alimentos, eles reaparecem, reproduzem-se e continuam a nos alimentar. Ainda há espaço e tempo para plantar e acabar com a fome mundial e...
Teresópolis, 8 de outubro de 2009.