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terça-feira, 22 de janeiro de 2013

TRÊS PESSOAS




Na sala, mãe e filha estavam com a televisão ligada. Também conversavam durante o noticiário, antes da novela.
— “A Polícia Federal prendeu ontem mais três suspeitos de corrupção, apropriação indébita e desvio de dinheiro público para contas privadas no exterior.
    Mãe, se não choveu hoje, só chove na semana que vem.
— Que é isso, minha filha? Hoje de madrugada ouvi uns pingos e o terreiro amanheceu molhado.
— “Guerra do tráfico: facções rivais trocam tiros com policiais em pleno Centro da capital do estado e explodem duas granadas lançadas a esmo sobre as pessoas. Além de vários feridos, um senhor aposentado foi atingido no pescoço e morreu na hora.
— Filha, aquela sua blusa nova ficou boa em você? Eu comprei ontem, mas achei muito longa.
— Ah, mãe, ficou um pouquinho longa sim; apertada aqui embaixo, na barriga, mas nada fora da moda. Além do mais, a cor é linda. Mais uma vez, a senhora acertou. Brigada, tá?
— “O Congresso Nacional adia a votação do projeto de lei que autoriza a distribuição gratuita de preservativos em todo o território do país, inclusive nas regiões de classes mais abastadas. É a sétima vez, em dez anos, que o projeto entra em pauta, mas não há quorum suficiente para a aprovação. O porta-voz do governo, entretanto, explicou que, além da falta de interesse dos representantes dos cidadãos, as empresas não entraram em acordo com os fabricantes do produto que alegam não haver garantias para a distribuição dos preservativos.”.
— Cadê seu namorado? Tem tempo que ele não aparece aqui.
— Ainda deve estar com medo do papai. Depois daquele barraco que aconteceu aqui... ih.... bem, deixa para lá.
— “O presidente da República, em viagem oficial aos países economicamente relevantes do Leste Europeu, diz que as propostas de acordos bilaterais estão tendo bons respaldos e os laços com determinados países estão se estreitando. Novos e grandes parceiros comerciais estão surgindo. ‘O Brasil se aproxima cada vez mais do desenvolvimento. O futuro é agora!’,  alegou o nosso representante maior.
— Papai vai chegar que horas, mãe?
— Isso era tudo que queria saber. Saiu às sete horas do trabalho e falou que ia ao bar com três novos clientes, para tratar melhor dos assuntos. Só que eu liguei para o celular dele quando acabou a novela das sete e deu fora de área.
— “Crime no interior. Corpo totalmente desfigurado de um jovem é achado à beira de uma estrada próxima a uma propriedade particular. A Polícia suspeita de crime passional ou vingança. O inquérito foi aberto nessa manhã e aponta o empregado da fazenda como principal suspeito, mas veem cumplicidade da menor M., que também trabalha na fazenda. O crime abalou a pequena cidade por causa da atrocidade da execução. O prefeito está abalado e mandou os pêsames aos familiares, que são de origem bem humilde. A mãe do jovem está em estado de choque e o pai avisou que se as autoridades não se manifestarem logo, a Justiça Divina tomará as providências.”
— Mãe, estou com uma coceira aqui. Vê o que é para mim?
— Hum. Deve ser um mosquito que fez isso, nada demais. Passa amônia; está lá em cima do armário da cozinha, aquele cor-de-madeira. Aproveita e traz um copo d’água para mim, fazendo favor.
— “O Congresso dos Estados Unidos da América aprovou mais verbas para os militares e para a construção de material bélico com tecnologia de ponta. O tenaz objetivo é evitar as ações dos terroristas que ameaçam constantemente a democracia mundial e o poder de Deus. Parte da população de Washington fez uma caminhada até a Casa Branca, entretanto, a força policial não permitiu que passassem das imediações do local, confinando-os, pois, às margens do Pontiac.”
— Aqui está, mãe. Bem fresquinha. Já tomou o remédio?
— Está aqui na caixinha, foi até bom você me avisar porque a dor de cabeça está piorando.
— “Depois dos grandes resultados no Campeonato Mundial, a delegação de handebol solicitou ao comitê olímpico mais verbas para o esporte, uma vez que este é uma das atividades que mais vem se desenvolvendo e crescendo o número de praticantes nas escolas e nos clubes. O apoio daria condições aos atletas de treinarem e evitaria a larga emigração aos grandes centros do esporte, como a Europa.”
— Ih, mãe. Falou Europa ali? Não é de lá que veio a família da vovó?
— Isso mesmo, minha filha. Do Líbano, caminho para a Europa.
— “Uma senhora de sessenta e oito anos de idade ganhou uma menção honrosa da UNICEF, órgão das Nações Unidas para o auxílio às crianças pobres, por causa de seu projeto criado na cidade de F., onde abriga crianças órfãs e carentes, dando-lhes casa, comida e o principal: carinho.”.
    Ah, que coisa bonita! É assim que as pessoas deviam ser. 
— Até que enfim uma notícia que preste! É só desgraça, coisa boa nunca mostram... até que hoje foi bom o jornal.
— “Boa Noite. Boa noite!”
— Mãe presta atenção que vai começar o capítulo.
— Estou aqui minha filha. Você acha que eu vou perder?
O marido, cansado e um pouco alto devido às cervejas, chega em casa. Recebe um oi e um boa noite não se sabe de qual das duas, ou da terceira outra “pessoa”. Vai para a cozinha, come o que acha nas panelas sem se dar o trabalho de esquentar. Banheiro e quarto.

Petrópolis, 28 de dezembro de 2004.