Zelador

Minha foto
...de repente, o que está aqui lhe apetece.

Seguidores

domingo, 23 de dezembro de 2012

RAY, ou, 'Se tá ruim pá nóis imagina pra classe média'



Agora que já passou o amigo-oculto da “empresa”, pode falar da saga que é comprar um, um único presente. Fui o último a tirar o papelzinho, era aquele ou nenhum mais. Vibrei quando vi na lista o presente sugerido: Um disco do Ray Charles. Sem mais. Não! Mais um pouco. 

Pensei que passara todas as músicas do Ray para o meu computador. Faria uma bela coleção, imprimiria algumas fotos do Ray, contrataria os serviços de publicidade do meu irmão e faria um maravilhoso CD/MP3 pirata. Só que não pude fazer isso. As músicas não foram para o computador, logo, haveria de comprá-lo. 

Eu ainda gosto de comprar CDs. Destino, pois, L.A. (Lojas Americanas). Coisa rápida, apesar das cheias nas ruas durante este período.

Eu, que costumo fazer as coisas do dia-a-dia a pé, decidi ingenuamente (a ingenuidade que ainda há de me finar) ir de ônibus naquele dia. Os ônibus da bela Teresópolis adotaram um sistema de identificação de idosos por meio das digitais. Então o senhor ou senhora, para ter sua passagem gratuita, deve passar o dedo em um sensor que irá identificá-lo e o liberar a catraca... isso na teoria. A prática: passa um dedo da mão direita, digital incorreta; passa o outro, o dedo médio, digital incorreta. Fila aumenta, surgem reclamações. Passa o indicador da esquerda, digital incorreta. Motorista e trocador são vítimas injustas das reclamações. Dedo médio da esquerda (simbolismo da revolta), demora, processando, digital correta, idoso aprovado. Isso a cada parada, cinco minutos. O que seria uma “viagem” de pouco mais de seis minutos se transforma em mais de trinta, agregando o intenso tráfego. A pé, chegaria bem antes às L.A. Mas...

Lojas Americanas. É certo que haverá alguns CDs do Ray, todos que comprei vieram de lá. Alguns minutos procurando naquele caos de prateleiras sairía com um exemplar por ótimo preço. Entretanto, o caos é maior do que imaginava. Verifiquei nas prateleiras de CDs caros (quase comprei um do Zé Ramalho tocando Beatles) e nada de Ray Charles. Tive que me dirigir a uma funcionária:
- Senhorita, por favor. Cd do...
Por uns instantes achei que estava invisível, mas ela me indicou outro funcionário apontando-o com o queixo:
- Boa tarde, amigo. Cd do Ray Charles.

Devo frisar que tocava pela segunda vez o outro Rei, o Carlos, O Cara. Ao que ele me responde:

- É só procurar, temos vários dele. Você quer o novo?
- Não, apenas uma coletânea...
- Tem nas prateleiras e naquele cesto ali. Tem que procurar. Até os da Jovem Guarda.

Dedilhei aquilo tudo. De AC/DC a Belo; de Judas Priest a Victor & Léo – peguei um de Santana, O Cantador, presente para meu pai - de Chico Buarque a Oasis; De Biquíni Cavadão a Guns ‘n’ Roses – achei um de tangos, para mainha. É, deveria ir à loja especializada em CDs e variantes. Comprei os CDs sem enfrentar fila porque ninguém havia reparado nas caixas vazias em outro setor.
Chegando à loja especializada, recepção de gala. “Boa tarde, boa tarde, posso lhe ajudar, claro, Entre e Ouça. 
- Ray Charles. - fui lacônico.
- CD ou DVD? – o sujeito era profissional.
- CD.

Acenou-me no estilo: “vem comigo que você não vai se arrepender”, e deixou em minhas mãos quatro CDs do Ray. Dois com músicas dos primeiros anos de sucesso e outros dois com gravações mais modernas. Nenhuma coletânea. Achei ótimo. Alguns minutos de escolha e decidi por um com canções mais atuais, pouco antes da morte dele. Quase levei todos.

Evitava ver outros produtos, pois já pensava em comprar muita coisa – dos DVDs, um do Pink Floyd e outro do The Who; dos CDs um do ainda Jorge Ben e outro David Bowie. Comprei o presente, afinal, e ainda vi duas meninas procurando por Yellow Submarine; outro jovem casal querendo um DVD de uma Filarmônica que tocasse Beethoven. Ali se mostrava a esperança na melhora da humanidade, apesar de poucas horas antes de mais um Fim-do-Mundo.

Já se passavam quase três horas de “compras”. Saí da loja e tomei a rua. Novo caos. Os carros me declinavam da esperança de melhora da humanidade através de seus potentes e abelhudos sons. Mas estava pronto para o amigo-oculto, pessoa especialíssima. Tão especial quanto a que tirou o papelzinho com meu nome, colega de função (co-worker). Tenho, finalmente, “Educação Sentimental” de Gustave Flaubert. Com dedicatória!

Foi desgastante, um só presente como objetivo. Mas, imagina para os que devem comprar mais de dois?

Itaipava, 23 de dezembro de 2012. 

  



domingo, 21 de outubro de 2012

ABELARDO, O MUAR DO SERTÃO




Ali nas cercanias do campo de futebol de Seu Ataíde vive Abelardo, o Muar do Sertão. O Pessoal, depois das partidas, não rejeita churrasco de bode e cerveja; pingas e o que demais houver para repor energias. O córrego perene salva a sede de todos.

Abelardo, o Muar do Sertão, sempre quieto, ouve mais do que fala, mas quando fala, fala bem, às vezes nem tão bonito, porque fala a verdade que vê. Vê tudo, mas engana o Pessoal fingindo que não vê. Abelardo, o Muar do Sertão, gosta dos humanos, mas tem vez que não aguenta tanta... humanice.

E lá estava Abelardo, anda solto porque ninguém o há de amarrar senão quando assim deseja, quando vai para a venda encher seu caçuá de palma e feijão de corda. Sempre cumprimenta Valdemá, O Carcará e Calango Jango, que nada tem a ver com o Goulart. De vez em quando tem papo entre eles, que a gente pode até registrar aqui um dia desses.

E foi num dia desses que Abelardo, ouvindo o Pessoal contar umas humanadas (que na nossa visão seriam besteiras), percebeu um movimento esquisito no icó que fica do lado esquerdo do campo, perto da bandeirinha de escanteio. Bicho branco e ágil, destacava-se do chão rachado e ocre. Não era Calango Jango. O bichinho passou pelo Pessoal, pegou uma migalha de alguma coisa e correu; e subiu o umbuzeiro. Abelardo olhou cabreiro para aquele alienígena, que com suas patinhas velozes e respiração apressada, chamava pela presença do muar. Ao se aproximar, ouviu-se um falsete:

- Abelardo, O Muar do Sertão! É você?
- Oxente, quem és tu, cramunhãozinho, para me conhecer?
- Jovelino, o Esquilo Albino. O senhor é famoso aqui e por aí tudo. Aquele que resolve qualquer problema.
- Bom, já vejo que não alucino. Só que nada sou orgulhoso, tampouco cego, surdo e mudo. Desembuche, não tema. Te escuto.
- Só um minuto, estou arfante. Já sigo adiante.
- Tem mais de hora, recupere-se da corrida e do tranco.
- Muito embora eu seja um esquilo, percebe que sou branco, coisa que não devia ser. Mas assim nasci, fazer o quê?
- Ora, ora, e em quê que isso lhe aporrinha?
- Nenhuma esquila me quer, essas coisas de não aceitar os diferentes. E só me sobram as ratinhas, branquinhas, que moram no laboratório. Mas nem a elas posso amar.
- Antes lá que num sanatório, aonde nos leva, de quando em quando, um amor ardente. E o que lhe impede de a elas namorar?
- Eu as paquerava à distância, jogávamos charminhos. Até que um dia que resolvi abrir caminho e sentir a fragrância, como um olor de açucena. Porém, seu Abelardo, chegando às janelas, que fardo, que pena, judiaram delas. Bisturi e seringas, tudo ali vira experiência. Não posso com isso não.
- Aí que vem a paciência. Esperar que uma esquila morena não seja racista, tenha inteligência e a ela falte ignorância para perceber que aí em teu peito, seu menino, há muito amor.
- Pobre eu, além de albino sofredor. O que impedirá para que não desista?
- Nobre sofrer, de todo o batalhador. Jovelino, o Esquilo Albino, não perca a esperança, é o que posso lhe dizer. Insista.
- Assim seja. Vou eu, então, por aí, Seu Abelardo, o Muar do Sertão. Obrigado de coração, deste que ainda bate forte por uma esquila serena. Quem sabe ainda não exala a açucena? Até mais ver.
- Peleja plena é essa coisa de vida. Até.
E Abelardo viu Jovelino chispar pelas picadas. Bebeu no córrego e voltou para perto do Pessoal.

Itaipava, 21 de outubro de 2012.

segunda-feira, 15 de outubro de 2012

E LÁ EM CIMA, O CASTELO EM FESTA



 
- Ô bicho, você foi muito cedo, cara. Sei que todos vão cedo, mas você exagerou! – revoltei-me.

- Ô Quintella, eu sei, foi mal. – João Lenjob, Galo forte, tenta se desculpar, com aquele singelo sotaque mineiro; boina, camisa do Atlético Mineiro, um violão; sem a bengala.

- Pô, brother, agora não sei se vai ser mais fácil ou difícil nos falarmos. Eu tento daqui e você tenta daí. Tempo agora você tem. Seu Castelo, o do Poeta, o do artista, que você é – múltiplo artista – vai ser o mais acessível ainda. Vejo daqui, de um modo que não sei explicar, que John Lennon e Antônio Carlos já estão lá na porta, te esperando. Os dois com uma viola. Mais tarde o Arnaud Rodrigues e o Chico Anysio apareceram por lá, eles estão ainda um pouco ocupados conversando com o Millôr.

- Ô bicho, é mesmo, tô até meio encabulado.

- Ora, meu cumpádi, até parece! Você, encabulado? Continua com seu grande humor. Ó, prestenção, aí não deve ter essa babaquice de se vexar e se intimidar com nossos ídolos daqui de baixo. Aí em cima a relação deve ser outra, suponho. Difícil vai ser aqui para gente. E Nova Era, como é que ai ficar? E o Maletta? E aqueles botecos do Gutierrez em BH? E os discos e as cachacinhas no La Rara?

- Ah, mas se eu puder eu passarei por lá. Também não sei muita coisa, Quintella, tô chegando aqui agora.

- Compreendo, quer dizer, tento compreender. Para aí que pretendo, que todos pretendemos. Todos aqueles, meu amigo, meu primo – por que não? – todos aqueles que você fez sorrir e se emocionar. Todos aqueles que você ensinou; que você, incansável, buscou para que conhecêssemos. Poxa vida, quanta intensidade em quatro anos que convivemos.

- Pois é, bicho, parecia que sempre havíamos sido amigos.

- As tardes de domingo, quando eu e Ana Letícia íamos para a saideira de BH, e depois voltava para minha casa. Aquelas longas conversas despretensiosas e sadias com João, Juquinha, Tiana e Orminda. Cervejas, pães de queijo, esportes, Big Brother.

- Ô! Nem me fala, sentirei saudades de estar fisicamente, materialmente com vocês...

- É, porque bem sabe que além de sua obra, seu trabalho está bem vivo em todos nós... Cara, que droga, você foi cedo demais.

... Vai lá Joãozinho, tô vendo daqui quatro caras chegando lá no se Castelo. Dê uma olhada. Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos, Hélio Pelegrino e Otto Lara Resende. Ih! Mais um, o Drummond! E outro, seu xará, o Rosa. Vai lá, um bom papo agora, como sempre. E nós aqui aguentamos o tranco.

A gente se fala.

Itaipava, Petrópolis – 15 de outubro de 2012.

sábado, 13 de outubro de 2012

HEMINGWAY REVISITADO




Aquele que imaginar uma resenha ousada sobre Ernest Hemingway ou uma obra dele nas próximas linhas mude o espírito da leitura.

Ainda não li uma obra inteira dele senão comentários e artigos. Vi também alguns documentários sobre vida e obras. Isso já seria suficiente para algumas palavras, mas não seriam tão aprofundadas como gostaria de escrever numa crônica. Hemingway é um dos escritores a quem devo ler. A ele e a outros mil.

Um dia, afanei emprestado lá do serviço uma biografia dele, escrito por Carlos Baker; versão pocket book, tamanho político/banqueiro, ou seja, bem grossa (explicação desnecessária). No intuito de devolver rapidamente o livro à instituição, decidi acabar com o livro rapidamente.

Consegui ler boa quase-centena de páginas, mas a vida corrida da atual modernidade pós-moderna da contemporaneidade nos impele a outras demais atividades que não uma leitura daquilo que o indivíduo de nossa era pensa em terminar; fenômeno este mais conhecido como “A preguiça sobre as leituras descompromissadas: difusões e infusões da antiga Grécia à transição do século XX para o XXI”.

Entretanto, o Inconsciente, este nosso ambivalente companheiro, que concomitantemente não cansa de nos pregar peças nos ajudar a descobrirmos a nós mesmos, armou uma para cima de mim.

Resolvi devolvê-lo. Tornei-me irredutível. Larguei o livro na minha escrivaninha, liguei o meu grande MP3 (laptop). Passava das onze da noite. Variava entre uma palavra cruzada e uma partida de Mah-Jong no (agora) laptop, para chamar o sono que andava por perto. Escolhi umas músicas do The Cult, Metallica e AC/DC, pus no aleatório (em português, random) e deixei rolar. Depois de Hells Bells, do AC/DC, veio For Whom the Bells Tolls (Por quem os sinos dobram?), do Metallica.

Foi um sinal. 

Mas não soube o que fazer, como reagir a esse sinal. Achei que depois de ter ouvido a sequência, ou mesmo um pouco antes, deveria voltar à leitura, ainda que por alguns minutos antes de dormir. Assim o fiz. Só que nas páginas que lia havia muitas palavras que não entendia. A preguiça de pegar o dicionário (Cambridge Bloody Fucker Dictionary of English & Culture) mais vezes que o próprio livro aumenta quando estamos deitados. Desse modo, dormi.

Lá pelo meio da noite, subi na varanda de um bar. Luzes espalhadas pelas paredes em terracota ou cor de laranja. Um poste iluminava ninguém mais, ninguém menos que ele: o Ernest. Ele estava compenetrado ao folhear pequenos papeis em cores fluorescentes. Olhava algumas figuras, escrevia pequenas frases; poemas? Caramba, vejo o grande escritor na fase de criação, de produção!  
- Ernest, é você? - Indaguei-lhe.
Ele apenas levantou os olhos com uma cara de Orson Welles, inclinou um pouco mais a cabeça e me disse.
- Vamos, garoto, pegue uma cadeira e me ajude aqui. Quer cerveja?
Não respondi, apenas tentei ir para a mesa e, ansioso, não sabia se falava em inglês ou em português, por mais que ele já tivesse se comunicado em português, com timbre de dubladores da Herbert Richards, AIC-São Paulo ou DKS. Jogou para mim duas ou três folhas coloridas daquelas. Tinham fotos de drinques como daiquiris, mojitos, sangrias etc. Um garçom ultra bem vestido, parecia com o personagem de charges Amigo-da-Onça, me entrega um whisky. Ele continuava com a birita dele, intacta, e compenetrado.
- Quero lançar um livro das melhores receitas de daiquiris, ajude-me a escolher umas boas aí, rapaz.
- Claro.
Enquanto olhava aquelas receitas, comecei a achar aquilo meio besta. Estava na mesma mesa que Ernest! Pô, vamos trocar uma ideia em vez de fazer essa triagem de cangibrinas. nsei isso, mas falei:
- Pô, Ernest! Cara, me conta aí das suas paradas, de seus escritos, seus perrengues lá na Guerra Civil espanhola.
- Tudo bem garoto, vou lhe falar: está tudo escrito.

Quando acordei, honrado por ter tomado um esporro didático do Ernest, o mínimo que devia fazer era continuar a ler. Voltei a dormir, no entanto, na tentativa de voltar ao bar onde estava o Ernest para inventar uma desculpa e promessa de leitura.
Nunca mais o li, embora esteja lá, na minha cabeceira. junto com o "O velho e o Mar", que surrupiei emprestado da casa de meus pais.

Itaipava, Petrópolis – 13 de outubro de 2012.  

segunda-feira, 24 de setembro de 2012

NÓS, LUSÓFONOS: LAÇOS HISTÓRICOS, CULTURAIS E POLÍTICOS




Para o bem da Literatura em Língua Portuguesa, José Saramago ganhou o prêmio Nobel da Literatura em 1998 com o livro, se não me engano, “Levantado do Chão”. E para o bem do mundo, essa premiação eriçou a curiosidade mundial daqueles que ainda não haviam atentado para a qualidade das obras em nosso idioma. Essa expressão, nosso idioma, é muito bem figurada por ele como o idioma de Camões e Machado de Assis, “pois o mundo ainda não o conhece como deveria”.

Li em uma recente edição de Grande Sertões: Veredas um prefácio ou ensaio dizendo que já na década de 30 a língua portuguesa merecia seu Nobel com Guimarães Rosa, para citar somente um. Entretanto, continua o autor do prefácio, o fato de ser em língua portuguesa ainda era muito exótico, digamos assim, para a literatura mundial reconhecê-la segundo os parâmetros da homenagem sueca. Saramago seguramente endossa essa e diversas outras opiniões quanto o tardio reconhecimento de nossa literatura moderna e contemporânea.

Saramago não se considera um grande romancista senão um ensaísta que brinca com a prosa e, desse modo, transforma seus escritos em quase-romances. Desde 98, portanto, os leitores de todo o Brasil e do mundo passaram a conhecer mais suas obras por causa da grande oferta nas livrarias e reedições oferecidas pelas editoras. Um mundo leitor que já conhecia Eça de Queiróz, Júlio Dinis e Camilo Castelo Branco; Mário de Sá Carneiro, Florbela Espanca e Antero de Quental.

Fernando Pessoa é mais que pessoa, mais que alma, mais que poeta, mais que mundial. Logo, é outro assunto, meta-filosofal.

Para nós brasileiros, não teria graça falar dos nossos magistrais escritores porque nós temos conhecimento deles e de suas obras. Mas é interessante perceber que só falei até agora de brasileiros e portugueses. Não falei dos africanos de Angola, Cabo Verde, Moçambique, Guiné-Bissau e São Tomé e Príncipe; e dos asiáticos do Timor Leste, Goa e Dão (Índia), Málaca e ainda Macau.

Não falar deles foi um dos sintomas, o outro é saber que, embora haja grandes pesquisadores e especialistas em Literatura africana, a quantidade de cursos e disciplinas é escassa. Para os novos profissionais da área e aos estudiosos, engajar-se no estudo de nosso idioma no outro lado do Atlântico e em dois pontos do Índico, será uma seqüência de descobertas equivalente às que os navegadores portugueses fizeram há mais de cinco séculos, por mares nunca dantes navegados. Desse modo, Saramago dirá que o nosso idioma é o idioma de Camões, Machado de Assis, João Agualusa (Angola), Mia Couto (Moçambique), Manuel Lopes (Cabo Verde). E ainda vamos nos surpreender quando descobrimos a literatura do Timor Leste.

Todavia, José Saramago, não deixou - e com razão -, que a editora brasileira fizesse uma leve adaptação para o português falado no Brasil. Em seus escritos está a língua portuguesa, em uma de suas manifestações. Ora, pois, concordo com nosso ribaltejano, sabe ocê? Adaptando uma obra em português para português do Brasil é, não só mudar a língua e o sentido como, pior, empobrecê-la, não é? A magia de uma língua tão falada no mundo é saber de suas variações gramaticais, ortográficas, lingüísticas etc. de acordo com suas circunstâncias históricas, sociais e políticas.

Política... toquei no assunto. A Rádio e Televisão Portuguesa (a iérretepê) mostrou um brilhante documentário sobre a eclosão da revolução dos angolanos contra os colonos brancos portugueses e a situação de colônia, ou seja, a guerra pela descolonização e independência de Angola. 15 de março de 1961, as forças da União Popular de Angola (UPA) iniciavam oficialmente a sua vontade de se desatar da ditadura de Salazar.

Gostaria muito de desenvolver esse tema, que está bem fresco em minha cabeça, mas deixarei para outra ocasião, ou mais adiante, pois prefiro atentar para um suposto detalhe da edição do documentário.

A narração e os depoimentos dos militares portugueses e dos portugueses colonos nascidos em Angola não tinham qualquer legenda, naturalmente. Nem imaginaria legenda em uma questão delicada entre duas regiões de mesmo idioma, no entanto, não acontecia isso quando os ex-membros da UPA. E após o impacto dessas legendas em português para um discurso em português, percebia que entendia melhor os angolanos do que os discursos dos militares portugueses.

Compreendi que por ser um programa de Portugal, valeria a pena uma legenda caso o português angolano fosse mais para dialeto do que para o idioma. As legendas, porém, eram desnecessárias, por mais que eu tivesse que prestar atenção. Era uma espécie de tradução de língua falada para língua escrita. E para um brasileiro, os dois eram dialetos, mas línguas modernas e atuais, também manifestações regionais e sociais da língua portuguesa.

E no lugar de concluir, questiono: Saramago concordaria com essas legendas em espécie de tradução das falas dos angolanos? Se assim o fizesse, deveria deixar fluir as adaptações de suas obras, caso contrário, há um ranço colonialista em defender o português de Portugal.

Compliquei, né?
* E quatro anos, desde que escrevi esse texto, é prazeroso saber que a quantidade e distribuição de romances e outras obras em línguas portuguesas aumentou muito.

Teresópolis, 29 de janeiro de 2008.

segunda-feira, 9 de julho de 2012

CRÔNICAS 2012 No. 42


Teresópolis, 12 de junho de 2012.

A monotonia parece se impregnar em todas as atividades. Eu pensava que poderia combater a monotnia sendo professor, mas até a arte de ensinar tem seu lado monótono, como apertar de parafusos de uma linha de produção, como a contabilidade estatal ou privada; como o funcionarismo público. A monotonia é um mal. Não gosto da monotonia. É ela necessária? Podemos afastar a monotonia inclusive de trabalhos que “exigem” monotonia? Acho sim, para todas as perguntas anteriores. Pensar sobre isso agora me tornou complexo demais. Há muitas outras coisas das quais não gosto.

Não gosto de bar, ou qualquer estabelecimento, que não passa futebol na TV. Que pelo menos fiquem com aquilo ligado para que, quando não pudermos assistir o jogo, veremos quanto está o placar.

Não gosto de pessoas que perguntam “qual é sua graça?” em vez de “qual é o seu nome?”, “Como você se chama?”, ou mesmo um “Athaulfo, prazer; Thiago, o prazer é meu”. Qual é sua graça é engraçado demais. E já ouvi pessoas perguntando isso para crianças, e uma das crianças, certa vez, era eu.
Voltando à vaca-fria, eu não gosto de esquecer nomes ou palavras. E à proporção que a palavra não surge, em qualquer uma das três línguas que falo, eu vou querendo saber por que eu as esqueci e cada vez esqueço mais. É uma droga querer nos analisarmos mediocremente. Isso acontece muito quando estou monótono.

Eu não gosto de muletas de discurso senão somente quando indispensável. A lista é vasta: veja bem, veja você, deixe eu ver se me faço compreender, talvez eu consiga explicar, ow prestenção vai escutando, o que que acontece etc. Tento evitar tudo isso.

Não gosto de determinados assuntos. Sei que para cada assunto há uma dose a se respeitar ou limitar. Vale a ressalva de que meu “não gostar” significa não ficar muito feliz quando tais coisas citadas aqui ocorrem, mas nada que não suporte, pois, uma de minhas saídas para isso é transformar tais incômodos em arte. Mas, voltando mais uma vez à vaca-fria, não gosto de determinados assuntos, de assuntos que se prolonguem demais. Por exemplo: carros. Quando excedem no assunto “carros”.
Não gosto quando me perguntam algo, mas não querem uma resposta ou opinião ou ponderação adversa, principalmente quando sei que a fonte é revista Veja ou rede Globo. São os oradores retóricos do terceiro milênio.
Não gosto de histórias bem ou malfadadas com ou contra a polícia. São os herois do terceiro milênio.
Não gosto de discursos genocidas.
Não gosto de sobremesas.
Não gosto de restaurantes que possam lhe atribuir status.

Não gosto do vulgo (classe média que se acha elite) quando estabelece as modas descoladas, por exemplo, comprar um Renault, viajar para Ushuaia e Punta Arenas. Ou descobrir o Oriente visitando Estambul, Jerusalém ou... Dubai. Melhor (ou pior) ainda, achar que Dubai é o exemplo de civilização, progresso, cidadania etc. Sempre com a visão de que todos esses lugares são exóticos demais, ótima experiência, mas bom mesmo é Néviorque ou Miami.

Não gosto de falar sobre "coisas que não gosto", somente quando sei que posso me incluir em uma dessas coisas que não gosto. E não gosto de apresentações em power point.

Não gosto quando reclamam do povo como se ao povo não pertencessem. Assim como não gosto quando utilizam a poderosa e autoritaríssima Sociedade como reguladora de todas nossas vontades, condutas ou atitudes. Essa tal Sociedade representa o vulgo e não o bom senso!

Não gosto de saxfone romântico.
Não gosto de terno e gravata.
Não gosto de assuntos sobre investimentos.
Não gosto de visão europeia analisando meu país, por que sejamos em parte europeus.
Não gosto de longos agudos em canções.

quarta-feira, 30 de maio de 2012

Crônicas 2012 no.36

Acredito que este seja o número verdadeiro da crônica desta sequência 2012. Vou salvar o documento agora e já lhes digo... acertei. Mesmo ontem bebendo até às 4 da manhã, eu consegui lembrar do número. Consegui, inclusive, ouvindo Metal e New Order, formular inúmeros versos de Blues e várias músicas. Mas saí somente com uma letra que, não obstante, necessita de revisões. 

Agora ouço Whitesnake e tento decifrar os títulos das músicas que não vieram no CD que gravei. Não são muito sofisticadas e isso pode facilitar a descoberta dessas letras. "Let's get ut tonight, make me feel alright"; Remember we once thought we will live together, our love would last forever" e afins. Basta prestar um pouquinho mais de atenção. As aulas de ontem até que foram boas. Na verdade duas das quatro aulas foram boas (putz, acabo de me lembrar que não assinei o ponto. Deve ter sido o frio, que me fez querer voltar para casa logo e não ensar em nada). 

A primeira foi legal, mas só um dos dois alunos foi, aula de espanhol. E o tema era sobre ciúmes, relacionamentos dicotomias comportamentais de homem e mulher e na aula só dois compadres discutindo tudo sem um contraponto. A outra foi uma prova, a primeira do semestre, para a criançada de 10-11 anos. Antes de distribuir as provas eu premiei uma aluninha que me entregara todos os deveres de casa e fizera todos os trabalhos. A minha decisão de premiar aluno foi a menos planejada que fiz até hoje no mundo docente. Menos planejada e contra minha didática e até agora não sei se agi bem ante minha consciência. Eu explico: 

 Primeiro, acho que essa coisa de premiar, agradar quando se está fazendo a mais pura obrigação uma tremenda babaquice (é por isso que o Brasil tá assim!). Segundo, se for para premiar que eu premie o aluno mais esforçada, que foi o que aconteceu e até pode servir de motivação, mas não existe maior motivação na aula do que um aprendizado. Terceiro, eu poderia premiar com um livro, mas o prêmio foi um dobermann. Eu explico isso também: 

Um dos achados na recente mudança de meus pais foi um lote de bichos de pelúcia (o dobermann é de pelúcia, me esqueci de frisar) que em sua maioria foram adquiridos pela vontade de minha mãe. E isso não foi quando éramos crianças, foi coisa de cinco anos atrás. Era uma promoção semanal oferecida pela Casa &; Vídeo em conjunto com os jornais e com a WWF. Recortava-se a figura do bicho da promoção, mais dez pratas você ia até a Casa & Vídeo mais próxima e adquiria o seu bichinho de pelúcia, um bichinho ameaçado de extinção, não o de pelúcia senão o real. Eram dez ou doze bichos, ela não só quis os dez ou doze, mas também uma duplicata de um que mais lhe agradasse. E quem ia toda segunda-feira ou sábado anterior (era os dias que valia a promoção) enfrentar a fila e buscar o bichinho? Um dia consegui ficar mais tempo que nas filas dos bancos e em outro eu havia esquecido o recorte do bicho ou fui com o bicho errado (o bicho da vez era o panda, mas estava com o do mico-leão dourado, ou vice-versa, ou outros bichos). 

Essa missão sempre rendia uns bons perrengues. Mas eu estou contando isso porque... ah, porque, anos depois, minha acha essa galera toda, muitos ainda envolvidos no plástico e me sugere no dia das mães:
 - Thiago, olha aqui o que achei. Você não quer? 

Eu olhei para ela, mostrava-me cada um daqueles trecos advindos da caixa; eu via algum esporte na televisão com meu pai, tomando cerveja. Percebi o que era e continuei olhando-a indigna e indagativamente. E buscando todo meu passado e inclusive dos meus irmãos, quando foi que tivemos bichos de pelúcia? Ela sorriu e respondeu à minha cara:

 - É para você dar para os seus alunos, as crianças. 
 - Ah, sim tudo bem. Mas você não queria tanto a esses bichos, me fazia ir lá, desesperadamente, para conseguir uma ararinha-azul ou um puma do Patagônia?
 - Queria, mas agora não quero mais. 

 Então foi ali que pensei em fazer uma premiação neste fim de bimestre para a criançada. Minha turma tem cinco, e ali tinha suficiente para presentear todos, muito embora cresse que os três garotos da turma não se animariam em ganhar um bicho desses. Só que à medida que o dia das mães foi passando, fui percebendo que aqueles bichos não estavam em minha posse. Minha mãe foi dando de presente aos convidados que passavam por ali e, ao fim e ao cabo, estava eu somente com dois pinguins e o dito dobermann, sendo que só um dos pinguins era da dita promoção, assim como o dobermann, que não sei se está em extinção, era presentinho de um laboratório. 

 Em vez dos alunos, poderia distribuir para as professoras, mas elas são em número de seis. E que tal para as funcionárias? São quatro. Logo, sobrou-me apenas as aluninhas, que são duas. E poderia também abandonar essa ideia de premiar alunos com bichos de pelúcia e fazer somente o feijão-com-arroz, ensiná-los, dar-lhas a merecida nota e pronto, veria depois o que fazer com esses bichos, mas não... nãooo... a ideia ficou na minha cabeça como se fosse a maior de minhas obrigações. 

O importante é que a menina gostou, muito embora ela não tenha se manifestado na hora. E espero que a rapaziada faça e me entregue o dever no dia solicitado, porque eu, por exemplo, sempre fiz meus deveres de casa, principalmente os de inglês... até quando tinha a idade deles, pois depois descobri que um dever poderia ser feitos minutos antes da aula. 

 Teresópolis, 15 de maio de 2012.

terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

MELHOR ESTRANHO IMPOSSÍVEL

Foi estranho para os pais de Ricardo, quando o filho, após assistir Batman, em 1989, entrou no banheiro da suíte dos pais e começou a passar talco na cara e a se borrar de batom. A mãe foi ver o que ele fora fazer lá, pois não entendeu a pressa do filho, que nem deu um beijinho nela e nem falou sobre o filme.

- Ricardinho, meu filho, aconteceu alguma coisa?

E o garoto, trancado no banheiro, falou que estava tudo bem, só uma indisposição. Mas depois da demora, a mãe, preocupada, foi até o banheiro de seu quarto, devagar, e pelo reflexo do espelho viu que o filho se maquiava. Gelou, não soube o que fazer senão pensar no que houve de errado na criação dele para ele virar homossexual. Precipitadas conclusões.

Pouco tempo depois chega o pai, voltando do escritório. Ricardo Sérgio percebeu a chegada dele, viu que estava pronta sua máscara, correu pelo corredor até aparecer na sala e:

- Ráááá! Uhahaha!

O Coringa surgia naquele apartamento de luxo na nobre Ponta Verde da capital alagoana. Entre 17 e 18 anos, o estudante Ricardo se tornara o maior e mais doente fã de Jack Nicholson.

Isso preocupou os pais. Sempre fora um garoto com muitos problemas emocionais (não gostavam de falar que era um paciente psiquiátrico) e se envolvera com drogas muito cedo, embora estivesse, à época, mostrado certa recuperação após passagens em algumas clínicas e uma internação de 24 horas no Portugal Ramalho.

Seus “amigos” eram somente os fornecedores e compradores, aturava a galera do cursinho de vestibular e se afastara muito dos colegas e amigos do Colégio Santíssima Trindade, onde era o pivô do time de basquete. Era um cara muito inteligente, mas preguiçosos e, como percebemos, bem problemático.

Sem boas orientações, os pais acharam que aquilo era só uma brincadeira, uma extravagância. Quem gostou dessa nova fase de Ricardo foi o dono da vídeo locadora (que hoje não existe mais) perto da casa dele. Quase que o estabelecimento se especializou em filmes de Jack Nicholson. O dono conseguiu os antigos, que eram raros no mercado e sempre vinha com o lançamento. Muito embora tivesse que estudar muito para passar para uma faculdade, ainda pedia as coisas para o pai. Caso ele passasse, talvez recebesse seus desejos. Viu “Sem Destino” e quis ganhar uma moto. Viu “O Iluminado” e “Um Estranho no Ninho” e quis ser louco, louco mesmo. Chegou a se internar por conta própria no numa clínica psiquiátrica. Viu “O Último Magnata” em ser mesmo um magnata. A mãe, professora, até achou que ele começaria a se interessar por Literatura depois que disse que era um grande romance de Sinclair Lewis. Não era da vontade de Ricardo. Via os filmes que o cara da locadora lhe arrumava, às vezes com resultados de pesquisas que ele fazia.

Nós percebemos que não era uma relação saudável dele com seu ídolo. Quando trocou de time de basquete da NBA, de Chicago Bulls para Los Angeles Lakers, por causa de Jack, tentou voltar a jogar basquete. A disciplina lhe fez, finalmente, passar para Administração na Católica... de Recife, em 1994. Aí, sua vida foi o cabrobó.

Sempre morando sozinho, foi do Bairro de Damas, para Casa Amarela; morou em Piedade antes de se mudar para Boa Viagem, de frente para o mar, na esquina com a Carlos Pereira Falcão. Acompanhou a mudança do VHS para o DVD e também passou a comprar fitas e DVDs. A Internet melhorou suas pesquisas sobre as personagens de Jack.

Formou-se em 2000. Durante a faculdade era apenas engraçado ele ser um sujeito com Transtorno Obcessivo-Compulsivo a´pos ver “Melhor Impossível”; se preocupar com as invasões marcianas e achar que os serventes da faculdade e os zeladores eram marcianos; deixar a barba crescer, dizer que é lobisomem e querer namorar qualquer “galega” que visse pela frente. Tudo era engraçado e não teve problema algum em abrir uma empresa de empacotamento , congelamento e exportação de frutos do mar.

Qualquer psiquiatra, na primeira consulta, diria se tratar de um caso sério de esquizofrenia e, para o bom profissional, era um psicopata. Se ele se consultasse... Sua grana também vinha das vendas de coisas boas que todo mundo usa, continuando suas práticas em Maceió além da de painho. Mas a coisa ficou complicada depois que ele tentou roubar uma Harley Davidson após ver "Sem Destino" novamente. Em 2006 quis se internar de novo, mas lhe expulsaram do HPP, pois o caso dele, segundo concluíram, era de polícia. Nos cinemas estreava “Os Infiltrados”.
Tentou convencer o contínuo de sua empresa – que já caía pelas tabelas – a ficar observando os PMs para ver se eles não o perseguiam. Começou a ter problemas com impostos. Sua conta bancária não batia com seus gastos, com suas contas. Andava com problemas até que viu "Profissão: Repórter", que baixou da Internet. Recebera dele o aval para falsificar documentos.

Passou a abrir contas com identidades falsas, até que um dia, caminhando por seu bairro quando clique

quarta-feira, 11 de janeiro de 2012

BSB Crô. 1 – 2012: TRAJES*




Confiando na sequitude do Brasil Central, vesti camisa de manga curta e bermuda; e já me reacostumando aos endereços em coordenadas geográficas, o segundo dia do ano na capital federal foi dedicado ao conhecimento do local de serviço de minha namorada: Órgão Público –AJ, Setor Autarquias Sul Q 1 e 2, bem pertinho do prédio da AGU. Saída fácil do CCSW para pegar o Eixo Monumental e logo de frente encarar o Memorial JK e ver o cocuruto dos prédios gêmeos entre o côncavo e o convexo de nossas casas legislativas. Desde 1997 não os via.

Só que chovia fino e ventava como no Tropical de Altitude onde vivo. Como não sou de me arrepender do que vesti ao sair de casa, encarei minha desventura. Chegando ao prédio, entramos pela garagem. Cumprimentei um que ela cumprimentara, ajudei-a a estacionar como sói fazer um flanelinha diplomado e subimos pelo elevador até ao saguão onde se bate o ponto.

Versão moderna de O Processo, de Franz Kafka. Algumas almas de uniforme, engravatadas em borboleta e de terno preto. Faixas em paredes e portas: Conexão, Masculino, Almoxarifado, Feminino. Secretarias e secretárias. Vão central naturalmente iluminado, passarelas que ligavam o nada ao lugar nenhum, corredores obscuros, portas secretas seguindo a mesma textura de madeira das paredes, numa delas, de repente, eu entro. Assessoria Jurídica. Ali ela e sua amiga trabalhavam em pleno começo de ano.

Recebi a indicação de onde era o banheiro daquele andar. Fiz muito esforço para gravar o caminho de volta antes mesmo de ir. Voltei errando somente uma vez, arriscando-me a entrar em salas não autorizadas. Invadi a mesa de um funcionário, o que era permitido e, enquanto as duas discutiam valores tentei ler um conto do Octaedro, de Cortázar, desisti, escrevi três linhas:O que pode sair de uma vontade de escrever quando se está na Assessoria Jurídica, conforme indica o logotipo deste bloco? O melhor seria ler um conto de Cortázar, "Liliana chorando", mas está muito forte... voltarei à leitura. Tentei voltar a ler, mas o que devia fazer, como fiz, era dar uma volta pelo setor, à procura de um café, de bar, de algo inusitado.

Titubeantemente seguro, localizei a portaria e a ela me dirigi. No primeiro lance de escadas os olhares não eram amistosos. Funcionários da limpeza e outras almas miravam-me com espanto retido, com razão, pensei, pois não havia me identificado na portaria. Mas me fiz de gente boa e os cumprimentei com acenos e boas tardes; assim fui até à portaria, quando os engravatados que ali estavam interromperam o alegre assunto e voltaram seus olhares para mim.

- Opa! Boa tarde. – e saí.

O vento se tornava mais forte, desci as escadas em passos trêmulos, já sabendo que chegariam até Thiago QM e diriam que eu estava sob processo e deveria comparecer imediatamente ao tribunal. Foi questão de segundos, antes de acender meu cigarro um agente da segurança me avisou:

- Boa tarde.
Antecipei-me:

- Boa tarde, desculpe-me por não me identificar, estou na Assessoria do CNMP, minha namorada trabalha lá e...

Com uma delicadeza e polidez jamais vista por mim, ele avisa:

- Tudo bem, não há problema algum. Só pediria ao senhor que da próxima vez não viesse de bermuda. Será bom para todos nós (eles, da segurança) e para você. Pode voltar se quiser...

- Fique tranqüilo, não haverá próxima vez.

Avisei a ela pelo celular e quando o horário dela chegasse ao fim eu ali estaria. O que fiz virá em próxima crônica. Mas naquele dia, jamais voltei ao dito órgão público.

Brasília, 2 de janeiro de 2012.
* Mudei o título porque o anterior ameaçava alguma coisa.