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segunda-feira, 25 de outubro de 2010

JULIO, JÁ QUERIA FALAR SOBRE TI HÁ UM TEMPO


Mas tu te antecipas e me dás de presente de aniversário em 1981, sem eu saber, este conto. Ah, meus três anos de idade.

"Do livro "Papéis Inesperados" (Editora Civilização Brasileira - 2010, 487 páginas, tradução de Ari Roitman e Paulina Wacht) que estou lendo no momento e consiste de uma seleção de textos inéditos e dispersos escritos por Julio Cortázar (1914 - 1984) ao longo da vida, encontrados, em sua maioria, numa velha cômoda. Compilação de Aurora Bernárdez, viúva do escritor, e Carles Álvarez Garriga. O "conto-poema" abaixo, tão inserido no lirismo fantástico de Cortázar foi publicado somente no jornal mexicano "Unomásuno" em 11 de abril de 1981."

PERIPÉRICAS DA ÁGUA
(Julio Cortázar)

Basta conhecê-la um pouquinho para entender que a água está cansada de ser líquido. Prova disso é que na primeira oportunidade se transforma em gelo ou vapor, o que tampouco a satisfaz; o vapor se perde em absurdas divagações e o gelo é tosco e desajeitado, fica quieto onde pode e de modo geral só serve para dar vivacidade aos pinguins e aos gin and tonic. Por isso a água delicadamente escolhe a neve, que anima a sua mais secreta esperança, a de fixar para si mesma as formas de tudo o que não é água, as casas, os prados, as montanhas, as árvores.
Acho que deveríamos ajudar a neve em sua reiterada mas efêmera batalha, e que para isso seria necessário escolher uma árvore nevada, um esqueleto negro sobre cujos incontáveis braços vem se estabelecer a branca réplica perfeita. Não é fácil, mas se ao prever a nevada serrássemos o tronco de forma que a árvore se mantivesse em pé sem saber que já está morta, como o mandarim memoravelmente decapitado por um verdugo sutil, bastaria esperar que a neve repetisse a árvore em todos os seus detalhes e então retirá-la para um lado sem a menor sacudida, num leve e perfeito deslocamento.
Não creio que a gravidade desmanchasse o alvo castelo de cartas, tudo aconteceria como numa suspensão do vulgar e do rotineiro; em um tempo indefinível, uma árvore de neve sustentaria o sonho realizado da água. Talvez fosse destruída por um pássaro, ou o primeiro sol da manhã a empurraria para o nada com um dedo morno. São experiências que deveríamos tentar para que a água fique contente e volte a encher as jarras e copos com a alegria borbulhante que por ora reserva para as crianças e os pardais.


Graças a eles: Alexandre Kovacs e Ana Letícia, que me enviaram o texto.

segunda-feira, 18 de outubro de 2010

ESTRANHO NUMA TERRA ESTRANHA


O título acima pode se encaixar em diversos ocorridos dos quais fui turista em minha terra natal. Vítima, pois, do estereótipo, do padrão engessado pelo cientificismo novecentista europeu e espalhado pelo mundo com o aval estadunidense.

Tais experiências revelam não somente o quanto esses padrões étnicos são esdrúxulos no Brasil, como também, paradoxalmente, estão incrustados em nosso pensar e perceber. Em breve posso recuperar algumas crônicas do Canis Familiares – antigo blog onde contribuía – e expor algumas dessas experiências.

Peguei o título “Estranho numa terra estranha”, de um livro que minha saudosa tia e madrinha me sugeriu quando eu andava pelos 14-15 anos. Passava uma das férias no sítio de Areal-RJ, que era de minha avó materna.

Ao passar pelo corredor e sempre me deparar e vislumbrar com os livros, ela, que também passava por lá, resolveu pegar uns dois ou três para minha diversão. Um deles era “Strange in a Strange Land”, Estranho numa terra estranha. O problema é que havia a MTV, coisa que não tinha em minha casa em Petrópolis; e, apesar de à época já estar no intermediário de inglês, não tinha “raça e moral” (ou seja, vontade) para ler um romance na língua de F. Scott Fitzgerald.

Lembro-me da capa daquele romance, em estilo livro de bolso. Sobre um fundo vermelho, com planícies e montanhas beges, surgia um corpo antropóide azul, mais parecendo um espectro. Ela me explicou que a trama se passava em Marte. Hoje, com o “Advento do Internet”, sei que o autor é o norte-americano Robert A. Heinlein, que lançou o livro em 1961. Fazia parte do movimento da Contracultura, do movimento hippie. E seu título é também inspirado no livro Êxodo, da famosa Bíblia.

Pois então.

Em setembro de 2008 participava do Congresso Internacional de Psicopatologia Fundamental, que foi em Niterói. Fui acolhido na casa de um grande amigo em Copacabana. Havia chegado do primeiro dia de congresso, sexta-feira, às oito horas e em tal dia resolvi rever alguns pontos de minha palestra, que seria no domingo de manhã, e beber alguma coisa ali pela Rua Inhangá – local de minha primeira residência – ou no máximo chegar a um boteco onde pudesse escrever alguma coisa, até quando a cerveja me permitisse. Meu amigo e sua esposa tinham outro compromisso, digamos, mais punk rock.

Fiquei mesmo no balcão do bar do Ceará, bebendo minha cerveja, conversando com o pessoal que encararia a coleta de lixo a partir da meia-noite, e falei também com demais campeões sobre assuntos relacionados a viagens, geografia humana e características regionais do Brasil. As cervejas me impeliram para fazer um pequeno circuito por alguns bares ao longo daquela parte da Barata Ribeiro. Entre um e outro, passaria por um grupo de seis ou sete pessoas, que rumavam, possivelmente, para uma boate, devido às suas vestimentas. Conversavam em uma língua indecifrável e, enquanto tentava pegar uma palavra que me indicasse pelo menos a origem linguística, uma das moças do grupo vem ter comigo:

- Oi, tu moras aqui?
(Era português que falavam)
- Não, mas posso te dar alguma informação. – E outra menina me pergunta:
- Sabes onde há um casa de ........... (não entendi).
- Casa de quê?
Elas me explicaram, continuei não entendendo, e, assim sendo, deduzi que seria uma boate. Indiquei a “Mariozinho”, não sabia se ainda funcionava, mas eles já haviam ido para lá e falaram que não gostaram porque tinha que ter um convite (filipeta), mesmo que eles quisessem pagar. Indiquei, pois, um bar-boate chamado “Clandestino”, pouco mais para frente de onde estávamos, e me ofereci para ir com eles até lá.

Quando perguntei de onde eram, acertei. Angola. Só um casal era de Cabo Verde e outra menina, carioca, não sei por que não foi ela que me perguntou. Aí veio toda aquela minha conversa:

- “É uma honra tê-los aqui em meu país, sejam bem vindos, irmãos de Atlântico, irmãos de história. São de Luanda? Ah, Melange. Não, nunca visitei Angola, infelizmente. Nem Cabo Verde, vocês são de Praia? Ah, não, Mindalo, é a capital cultural, digamos assim. Manuel Lopes, grande escritor das ilhas.”

Falei também de onde era, onde tinha nascido, onde morava, onde morei, até que chegamos à porta do local. Despedi-me deles sem sucesso. Acabei entrando no Clandestino, que, na verdade, sempre tem boas bandas ou bons DJs. Havia um razoável fila. Nela me falaram do que faziam. Duas estudavam na UFRJ, assim como a carioca, o casal era turista, e os outros, com os quais não falei muito, pareciam ser imigrantes somente, mas um deles falou que era engenheiro.

Ah! Ia me esquecendo da questão etnológica, todos eram negros ou mulatos, assim como o segurança que nos pedia os documentos. Devia ser novo no ambiente, pois estranhava os documentos vermelhos, carteira de estrangeiro residente. Conferia-os minuciosamente. Na minha vez, embora estivesse com a carteira de identidade, verdinha, à mão, ele me pediu, num sotaque de Mumbai.
- Passport!
- Ih, mermão, está vencido desde 2006. Tenho só a carteira de identidade mesmo.

Petrópolis, 18 de outubro de 2010.

domingo, 10 de outubro de 2010

REPIQUE


Aqui nos – aindabem – trópicos: solstícios e equinócios mudam muito o clima, que já é, coitado, maluco hoje-em-dia desde de uns tempos atrás. Complicam nosso vestir quando a chuva sem aviso substitui o sol que antes um pouco se fazia imponente. E eu, que não me agrado de guarda-chuva(s)? E que dirão os alérgicos dessas viradas de tempo?

Era a chuva que ameaçava voltar. Peguei um café em copo de plástico na Taberna Guaíra, que está em frente à porta de entrada do meu trabalho, e para essa porta voltei. Acendi um cigarro. Observei, estava ali para isso. Muitos celulares apressados, as pessoas pouco os ouviam devido as músicas dos carros eleitorais; funk melodies, sambas-enredo, chamadas de rádio anunciado o pretenso representante. Na esquina oposta apontou um homem que se destacou pelo tamanho, ou pela falta de tamanho.

O diminuto trajava casaco de moletom cinza, cobrindo a cabeça com o capuz que o casaco lhe oferecia. A mochila vermelha e a bermuda bege. Começa a futucar a lixeira de plástico laranja que estava atada ao poste. Concentrei-me ali.

Acha uma latinha de alumínio. Joga-a no chão a amassando com o pé; deixa-a ali retomando a busca. Um guarda-chuva é capturado por ele. Abre-o e percebe – ou percebo eu? – que o tecido preto está em boas condições, mas em sua maioria desprendido dos arames. Verifica as pontas e a flexibilidade das hastes. “Daria para consertar?”, penso eu por ele.

Não sei, pois ele começa a dobrar e redobrar incessantemente as hastes afim de, creio eu, no momento, arrancá-las. Será que, pergunto-me, ele faria uma adaptação no guarda-chuva, diminuindo o comprimento das hastes e, assim sendo, chegando ao diâmetro que protegesse seu reduzido corpo das vindouras chuvas? Viesse a chuva que ele não se umidecia.

As hastes, uma a uma, foram arrancadas e enfileiradas e dispostas do meio-fio ao asfalto. Descansavam ao lado da latinha. Avalia o guarda-chuva semi-desossado enquanto um jovem Justin Biba (não sei o sobrenome dele ainda) passa por ele tentando jogar um papel na lixeira. Permissão concedida. Abre o murcho guarda-chuva e o devolve à lixeira.

Na melhor atitude “serviço completo”, junta o feixe de hastes na mão, pega a latinha e, como se portasse tamborim e baqueta, percussionou três ou quatro repiques no alumínio e rumou para lá, zaticatá; para cá de volta, zaticatau , pá pá... Compunha sua batida. Foi batendo.

Teresópolis, 28 de setembro de 2010.

segunda-feira, 4 de outubro de 2010

DEMOCRACIA BRASILEIRA

Ouvi diversas opiniões demonstrando insatisfações iradas quanto ao processo eleitoral democrático em nosso país.

Excetuando as raivas e rancores personalíssimos contra candidatos e quanto à própria vida do opinante, o que, infelizmente, mudava um pouco o foco da discussão, mas não deixava de ser avaliado, muitas das conversas pessoais começavam pelo estarrecimento do interlocutor em descobrir que não seguia a linha de pensamento que ele imaginava que eu seguisse. Viva o estereótipo.

Foram de fontes muito variadas, chegando até a questionarem a democracia por excelência. As opiniões vieram, majoritariamente, de eleitores que viram Serra e Alckmin perderem as eleições para Lula, respectivamente, nas eleições de 2002 e 2006.Daqueles que têm uma série de medos. E muito embora o próprio Fernando Henrique Cardoso, recém ex-presidente de então, dissesse que a eleição de Lula fosse uma vitória da democracia, pipocavam o desejo declarado do retorno à ditadura militar.

Desnecessário explicar o que é democracia para os que aqui vêm. Desde de sua etimologia até as versões de democracia apresentadas à humanidade ao longo de nossa história, mediante os discursos ideológicos que camuflam autoritarismos e oligarquias, parece que cada um tem seu próprio conceito de democracia.

A emoção, o sentimento e o inconsciente, não têm muito lugar no discurso político, ou, melhor dizendo, quando se trata de política conforme é reportada pela imprensa, como uma seção e não como ciência ou arte. Falar de política ainda traz a ética, a moral, a missão pétrea e tenaz, o “tudo ou nada”, “ bem e mal”, como norteadores do discurso.

Uma análise de conjuntura, uma olhada no processo histórico, social e político do Brasil (e também da Iberoamerica) e uma reflexão sobre o sentimento de classe – ainda que a luta de classes seja desconsiderada em muitos discursos políticos atuais – não são ponto tomados como devida parte de uma dialética, para uma discussão. E embora fosse dialética, ainda faltariam ponderações sobre uma terceira ou quarta visão.

O interregno de 1985-89 foi capaz de nos dar uma constituição e uma eleição direta. Forma e matéria para uma democracia, ou seja, Constituição cidadã e eleições diretas baseadas na isonomia (todos podem votar, sendo o voto secreto, e são obrigados a comparecer às urnas [ponto para discussão]) e na isegoria, cada voto vale um. Neste espaço vejo que não caberá, porém, as discussões e as considerações sobre a cidadania da Constituição de 1988 e a transparência das Eleições de 89.

Eleito Collor, dois anos foram suficientes para que houvesse o impeachment, que pelo termo em inglês tem a aprovação da democracia estadunidense (o que ainda é bom lá parece ser para nós cá); assume o vice, Itamar Franco. Foi muito importante um vice assumir e terminar seu mandato.

Novas eleições e, pelo voto direto, democrático, FHC, na nova linha Social-Democrata (uns chamam de neoliberalismo) assume a presidência. Luta pela reeleição, emenda-se a Constituição, é reeleito. Emenda Constitucional no. 16 do Capítulo IV, art. 14, §5º.:
Art. 14 - A soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos, e, nos termos da lei, mediante:(...)

§ 5º - O Presidente da República, os Governadores de Estado e do Distrito Federal, os Prefeitos e quem os houver sucedido ou substituído no curso dos mandatos poderão ser reeleitos para um único período subseqüente.
(redação da E.C. nº 16, de 04.06.97).

(texto anterior)§ 5º - São inelegíveis para os mesmos cargos, no período subseqüente, o Presidente da República, os Governadores de Estado e do Distrito Federal, os Prefeitos e quem os houver sucedido, ou substituído nos seis meses anteriores ao pleito."

Nenhum golpe visível.

Continuando o processo democrático, Lula é eleito e reeleito nos pleitos sequentes. E no fim do mês de outubro deste ano, de novo, poderemos escolher o presidente, ou Dilma Roussef, ou José Serra; apesar do STF, apesar da imprensa que toma parte no processo eleitoral, apesar das alianças, apesar da... política.

Portanto, onde é que cabe a revolta sobre a democracia eleitoral brasileira? Será que a democracia só é válida se for o seu candidato o eleito?

Não gostar do que representam Lula, FHC, Dilma, Serra e qualquer candidato a nos representar é normalíssimo e há de ser divulgado sempre... numa democracia.

Petrópolis, 4 de outubro de 2010.