Nada
do que fez e fizera até hoje lhe deu alguma vantagem. E a cada tentativa de
rumar para algo aceitável, norteado pelo senso-comum, aparece-lhe um obstáculo trazendo
a frustração, a pesada frustração à mostra. Dizem-lhe que não é assim. Que as
coisas não são assim, e às vezes “acontece”. Também lhe falam em depressão e
que deve se tratar o quanto antes.
Quando
foi se tratar, parou. Imóvel sob uma chuva contínua e branda. Seu casaco impermeável
impedia a água e o frio de perfurarem seu corpo, mas sua cabeça se molhava continuamente
por meio de gotas finas e oblíquas. Estancou-se, pois, um tanto antes do sinal
para pedestres abrir. As pessoas passavam de lá para cá, de cá para lá. O sinal
abriu para os carros, abriu-se novamente para os ambulantes não-motorizados; e
ele continuou parado.
Aos
poucos as pessoas percebiam que ele, ali, não estava num bom dia.
Duas
meninas em uniforme escolar riram com as mãos em suas respectivas bocas;
pararam em frente a ele, passaram as mãos em frente aos olhos daquela estranha
criatura e não notaram qualquer movimento. Seguiram o caminho delas, rindo,
olhando para trás, com as mãos continuando a esconder-lhes as respectivas
bocas.
Um
senhor de capote e chapéu tirou do bolso algumas moedas e procurou algum pote,
pano ou qualquer recipiente para lhe jogar moedas. Admira a criatividade e o
esforço de pessoas, como este homem-estátua, que usam a arte para sobreviver.
Deixou as moedas, no entanto, ao lado do pé esquerdo dele, e partiu para seu
curso pré-determinado.
Ele
começou a se desesperar. Sua cabeça, infelizmente, não parou de pensar, de
raciocinar, de querer comandar os membros.
Um
casal parou logo depois de reconhecê-lo, aquele cara paradão ali era o
professor de História da Arte de sua universidade. Cumprimentaram-no, com certa
empolgação e sem resposta. Não ficaram contrariados, pois, certamente era uma
das novas performances estéticas, como algo para abalar a sociedade que está
inserida em suas distrações e que não perceberiam um homem estático à beira da
calçada em vias de atravessar uma singela rua. Respeitaram-no e elogiaram a
proposta de seu mestre.
Ele
quis gritar. Subia-lhe um concreto por suas pernas, gradativamente seu corpo se
petrificava. Cada vez mais rigidez.
Um
cachorro lhe cheirou rapidamente, rodeou aquele novo cheiro que aparecera ali,
cheirou de novo, urinou onde estaria a perna direita daquele “poste”, jogou
alguma poeira com as patas de trás e tomou o próprio rumo.
Um
mendigo discorreu-lhe um assunto sério, achando que, também como ele, esperava
o sinal abrir. Sem reação, aceno ou contestação recíproca, apenas ofereceu-lhe
ajuda para atravessar. Mas ao ver que o concreto subia as pernas daquele
desgraçado que, diferente dele, não podia se mover, achou melhor deixá-lo em
paz. As estátuas atualmente enganam muito as pessoas, concluiu ao atravessar a
rua. O cachorro o seguira, não sei antes urinar naquele concreto novamente,
agora do lado esquerdo, mais para o centro.
Um
senhor de terno chegou perto de seus bolsos, que ainda não tinha sido
endurecido pelo concreto. Apalpou-os, tirou a carteira, um molho de chaves e um
celular. Surgiu a esperança deste bom-homem saber seu nome e ligar para algum
parente da lista de telefones, ou para os pais, que estavam nominados “papai” e
“mamãe”, ou mesmo para o “casa” ou “universidade”, onde ele trabalhava.
Entretanto, o bom homem de terno sacou da carteira tomada emprestada o dinheiro
que lá havia, deixando, em misericórdia, como bom-homem que é, uma quantia que
lhe seria suficiente para uma passagem de ônibus, caso ele voltasse a se mover.
Devolveu as chaves e o chip do celular.
O
concreto já alcançava suas coxas.
Um
casal de meninas, acompanhadas de um amigo, olharam-lhe como se se deparassem
com um totem. Encararam-lhe, fizeram reverências à divindade lhe beijaram a
boca. Chegaram alegres, saíram meditabundas, incrédulas ante àquela aparição.
Levaram aquilo como um sinal.
Já
tinha seu abdômen e tórax cobertos. A pulsação ecoava. Resignado, pensava, em
fim, ter uma morte semelhante ao efeito da cicuta em Sócrates, o filósofo. Isso
lhe deu um macabro conforto. Não mais viveria e ninguém daria por sua falta;
deixaria de ser o enfado que é para si e para todos.
Do
pescoço ao topo da cabeça o concreto tomou a forma de seu semblante. A última
coisa que vira foi a aproximação de um guarda municipal, em seu poder de
polícia, pedir-lhe para se locomover, fazendo anotações e chamando, por um
comunicador que ele não identificou, uma autoridade superior a fim de que se
procedesse sua retirada conforme a lei.
O
sinal de pedestres se abriu de novo e, dou outro lado da rua, voltando de sua
terapia, ele viu um monte gente, junto com algumas autoridades alguns pombos
rodeando alguma coisa. Discutiam e averiguavam o mistério daquela estátua que
era sua cara e corpo.
Teresópolis,
7 de novembro de 2013.