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quarta-feira, 15 de julho de 2015

ELE, ali


Nada do que fez e fizera até hoje lhe deu alguma vantagem. E a cada tentativa de rumar para algo aceitável, norteado pelo senso-comum, aparece-lhe um obstáculo trazendo a frustração, a pesada frustração à mostra. Dizem-lhe que não é assim. Que as coisas não são assim, e às vezes “acontece”. Também lhe falam em depressão e que deve se tratar o quanto antes.

Quando foi se tratar, parou. Imóvel sob uma chuva contínua e branda. Seu casaco impermeável impedia a água e o frio de perfurarem seu corpo, mas sua cabeça se molhava continuamente por meio de gotas finas e oblíquas. Estancou-se, pois, um tanto antes do sinal para pedestres abrir. As pessoas passavam de lá para cá, de cá para lá. O sinal abriu para os carros, abriu-se novamente para os ambulantes não-motorizados; e ele continuou parado.

Aos poucos as pessoas percebiam que ele, ali, não estava num bom dia.

Duas meninas em uniforme escolar riram com as mãos em suas respectivas bocas; pararam em frente a ele, passaram as mãos em frente aos olhos daquela estranha criatura e não notaram qualquer movimento. Seguiram o caminho delas, rindo, olhando para trás, com as mãos continuando a esconder-lhes as respectivas bocas.

Um senhor de capote e chapéu tirou do bolso algumas moedas e procurou algum pote, pano ou qualquer recipiente para lhe jogar moedas. Admira a criatividade e o esforço de pessoas, como este homem-estátua, que usam a arte para sobreviver. Deixou as moedas, no entanto, ao lado do pé esquerdo dele, e partiu para seu curso pré-determinado.

Ele começou a se desesperar. Sua cabeça, infelizmente, não parou de pensar, de raciocinar, de querer comandar os membros.

Um casal parou logo depois de reconhecê-lo, aquele cara paradão ali era o professor de História da Arte de sua universidade. Cumprimentaram-no, com certa empolgação e sem resposta. Não ficaram contrariados, pois, certamente era uma das novas performances estéticas, como algo para abalar a sociedade que está inserida em suas distrações e que não perceberiam um homem estático à beira da calçada em vias de atravessar uma singela rua. Respeitaram-no e elogiaram a proposta de seu mestre.

Ele quis gritar. Subia-lhe um concreto por suas pernas, gradativamente seu corpo se petrificava. Cada vez mais rigidez.

Um cachorro lhe cheirou rapidamente, rodeou aquele novo cheiro que aparecera ali, cheirou de novo, urinou onde estaria a perna direita daquele “poste”, jogou alguma poeira com as patas de trás e tomou o próprio rumo.

Um mendigo discorreu-lhe um assunto sério, achando que, também como ele, esperava o sinal abrir. Sem reação, aceno ou contestação recíproca, apenas ofereceu-lhe ajuda para atravessar. Mas ao ver que o concreto subia as pernas daquele desgraçado que, diferente dele, não podia se mover, achou melhor deixá-lo em paz. As estátuas atualmente enganam muito as pessoas, concluiu ao atravessar a rua. O cachorro o seguira, não sei antes urinar naquele concreto novamente, agora do lado esquerdo, mais para o centro.

Um senhor de terno chegou perto de seus bolsos, que ainda não tinha sido endurecido pelo concreto. Apalpou-os, tirou a carteira, um molho de chaves e um celular. Surgiu a esperança deste bom-homem saber seu nome e ligar para algum parente da lista de telefones, ou para os pais, que estavam nominados “papai” e “mamãe”, ou mesmo para o “casa” ou “universidade”, onde ele trabalhava. Entretanto, o bom homem de terno sacou da carteira tomada emprestada o dinheiro que lá havia, deixando, em misericórdia, como bom-homem que é, uma quantia que lhe seria suficiente para uma passagem de ônibus, caso ele voltasse a se mover. Devolveu as chaves e o chip do celular.

O concreto já alcançava suas coxas.

Um casal de meninas, acompanhadas de um amigo, olharam-lhe como se se deparassem com um totem. Encararam-lhe, fizeram reverências à divindade lhe beijaram a boca. Chegaram alegres, saíram meditabundas, incrédulas ante àquela aparição. Levaram aquilo como um sinal.

Já tinha seu abdômen e tórax cobertos. A pulsação ecoava. Resignado, pensava, em fim, ter uma morte semelhante ao efeito da cicuta em Sócrates, o filósofo. Isso lhe deu um macabro conforto. Não mais viveria e ninguém daria por sua falta; deixaria de ser o enfado que é para si e para todos.

Do pescoço ao topo da cabeça o concreto tomou a forma de seu semblante. A última coisa que vira foi a aproximação de um guarda municipal, em seu poder de polícia, pedir-lhe para se locomover, fazendo anotações e chamando, por um comunicador que ele não identificou, uma autoridade superior a fim de que se procedesse sua retirada conforme a lei.

O sinal de pedestres se abriu de novo e, dou outro lado da rua, voltando de sua terapia, ele viu um monte gente, junto com algumas autoridades alguns pombos rodeando alguma coisa. Discutiam e averiguavam o mistério daquela estátua que era sua cara e corpo.


Teresópolis, 7 de novembro de 2013.

terça-feira, 27 de janeiro de 2015

A "PELADA" E A ÁGUA DA BICA



Tema mais que batido na literatura moderna e contemporânea brasileira.  Mereço a minha vez.  

Devo dizer que não só o futebol – que é vida – mas todos os esportes e suas manifestações mundiais me levaram ao gosto da geografia, história, ciências sociais e, nos últimos anos, também, da literatura. A cada país participante de um evento, cada bandeira que aparecia na tela, tornavam-se um motivo para encarná-los em alguma partida imaginária, tanto quanto estava sozinho nos corredores de minhas casas ou apartamentos, como nos campinhos, reais ou imaginados. Não sabemos, pois se o futebol é uma variante da "pelada" ou vice-versa. Contudo, esta última é a mais rica.


Os alamanaques e demais Atlas que meus familiares me davam ou emprestavam não eram atualizados para o ano de 1988, para a gente incluir mais países nos campeonatos. A Rodésia disputava com o Sião uma vaga na semifinal. A Abissínia jogava contra Transkei, para ver quem enfrentaria o Vietnã do Sul ou a Guiana Holandesa. Entretanto, quando surgia um documento atual – um Atlas escolar de 1985 – donde era possível vermos uma sadia disputa entre Alemanha Oriental e Tchecoslováquia, prontas para pegar o Chipre ou o Saara Ocidental. Tinha o senso de boicote: África do Sul não entrava.

Esta parte geopolítica de fora, vale um relato dos terrenos. Areia de praia, Aterro, saibro, cimento, gramado hípico, brita, paralelepípedo; sala de estar, garagem (dentro e fora da), estacionamento, gramados inclinados e jardins; corredores, varandas, currais, a Atlântica aos domingos, aquele gramadinho dividindo o piso de pedras ao lado da piscina. Quadras diversas das escolas, fábbricas e demais estabelecimentos, terrenos baldios (que chamávamos de “vadios” [os terrenos] e, por fim, os campinhos gramados, já num estágio avançado de nossas idades (16,17,18 anos).

Mas Campinho de Pelada, por questões de segurança à saúde da pessoa, tem que ter uma fonte de água. Ali mesmo, perto da pracinha da prefeitura de Teresópolis, rolava, agora mesmo, uma bola com uma criançada variando de 8 a 13 anos de idade; dois chinelos de um lado e duas pedras do outro faziam as vezes das balizas. Nos intervalos, a molecada toda seguia para a bica mais próxima. Apesar dos protestos de mães e babás, elas não sabem que a todo “Não bebe essa água suja menino!”, implica-se imediatamente em “ Não tem problema, não, é água de mina.” Dito por algum sábio do time ou por um homem adulto, que também passara por essa experiência e ali estava vivo.


Sim, toda a água perto dos campinhos de pelada são de mina. E ainda não houve, na história da humanidade, alguém que tenha morrido ou mesmo “pegado” uma doença por causa das águas da bica, pois elas são sempre de mina, e águas de mina são saúdo-potáveis.

Teresópolis, 27 de janeiro de 2015.  

domingo, 20 de julho de 2014

MEDITAÇÕES CRUCIAIS


Não sei o que pode ser mais bizarro: eu ir a uma loja de conveniências em um posto de gasolina, pouco antes da meia-noite, para comprar dois sanduíches (em teoria) naturais e um suco de uva (light), ou o que lá presenciei.

Ali estava nessa minha (finalmente) atitude saudável em um postinho de gasolina. Após trocar dois ou três diálogos sobre rock com um aluno que aparecera por lá, dirigi-me para a fila da caixa com os já mencionados produtos. Embora a face da atendente (que eu conhecia) tenha demonstrado estranheza quanto à ausência de cerveja dentre os itens, ela não fez nenhum comentário.

Dois homens entraram na loja e se separaram para as devidas tarefas sem, no entanto, e apesar da distância entre eles, terminarem o assunto que teciam antes. Falavam com tal altura e naturalidade que parecia conversar com todos os presentes. Cheguei a pensar que um deles, o que pegava garrafas de água com e sem gás, falava comigo, mas, obviamente, o assunto era com o amigo, que vinha com uma garrafa de dois litros de Coca-Cola. Ainda que tivessem dirigido a mim alguma pergunta ou comentário, assim, de supetão, não compreenderia muito bem pois, em breve análise posterior, se tratava de um idioma que não era de origem latina, anglo-saxônica ou mesmo eslava.

Comecei a achar que estava em meus momentos de esquizofrenia linguística (se fosse possível ter “momentos” em esquizofrenia), porém me certifiquei que não ouvia o meu idioma ali. Não ouvíamos, melhor dizendo, pois o senhor que tomava café no balcão, a mulher que saíra do banheiro e a atendente também se concentravam no diálogo em idioma ou dialeto desconhecido que nos intrigava a todos.

Eles não ligavam ou nem imaginavam o mistério que nos oferecia. Um era alto e barbudo e o outro era baixo e semi-barbudo; ambos possuíam destacável naso-protuberância. De repente eles se movimentaram e tomaram a minha frente na fila, sem querer, uma vez que ainda consumiam as bebidas. Pedi-lhes licença sem mencionar palavra, mas aguçando os ouvidos no afã de desvendar pelo menos a origem, o tronco linguístico daquele dialeto. Formulei três análises para uma conclusão:

1 – Há em Teresópolis uma significativa colônia árabe dentre sírios, libaneses e iemenitas;
2 – Enquanto dei aulas de português para um ilustre médico libanês, o Bassim, com quem criei grande amizade, pude aprender alguns vocábulos e fonemas bem como alguma musicalidade no árabe que ele falava;
3 – Alguns adolescentes ou mesmo adultos terem a mesma musicalidade daquele colóquio, entretanto...

Conclusão: falavam em árabe.

Foram segundos de vã-glória. Paguei minhas provisões e demorei para sair da loja. Enquanto isso, um deles levava a garrafa de refrigerante já aberta para o carro e falou com a atendente na caixa:

- Pode incluir aí aquela Coca. Ele vai pagar.

Era o outro que estava na caixa, dispondo as garrafinhas de água e esperando o preço. Mesmo assim eu acreditava que um deles era de língua árabe, o que estava pagando. Firmou o contrato verbal de compra e venda em idioma ainda ininteligível para mim (mas suficiente para a atendente), embora já se assemelhando a um dialeto de origem latina. 

Quando saía, vi que eles entraram numa pick-up branca. A placa, pelo menos, me deu uma noção de onde vinha aquele idioma: Três Lagoas-MS. Na divisa com o estado de São Paulo, pertinho de Ilha Solteira. deviam ser parentes de algum formando e... Bom, aí já é muita conjectura para a paciência do leitor.
Teresópolis, 6 de dezembro de 2011.




sábado, 7 de junho de 2014

UM NOME SÓ



Um nome. É, um nome pode motivar uma crônica, conto... romance e, claro, poesia. É assim mesmo. É assim que ouvi um nome desses que me motivou a reportar as próximas linhas. Nada demais, já lhes digo, mas nos dará um risinho besta.

Na farmácia, pediria uns paliativos para gripe, uns descongestionadores. Um de nome persa, Nardirim. Ao que o atendente, de pronto, opinou:

- Este é o melhor! Limpa tudo, igual bala halls preta.

Concordei com o "bala halls". Depois me ofereceu um daqueles que multidetonadores da gripe, que inibem o vírus de modo semelhante ao que uma caipirinha faria.

- Mas toma esse no máximo de seis em seis horas, porque ele dá uma baqueada, te deixa meio sonolento. - Agradeci. Eu gosto desses conselhos solícitos.

- Podes crer.

A farmácia estava vazia. Dali para ir ao caixa, pagar e ir embora não duraria mais de um minuto. Bastava esperar aquele senhor tirar os cotovelos do balcão, eu ser o próximo, pagar e sair. Mas sair dali não era o objetivo imediato do senhor, daquele senhor, pois, até se explica, a farmacêutica estava no caixa. Linda farmacêutica.

Olhos amendoados encimados por talhada sobrancelhas; de um cabelo liso querendo se ondular, de um ondeado querendo se alisar; denso, de um negro brilhante. Nariz devidamente proporcional à largura e comprimento dos lábios, dos quais o pouco espaço entre o ápice do lábio superior com a base das narinas dava um charme inenarrável. Os cabelos, se soltos, atingiriam a vértebra lombar 2. A camisa parecia um número menor do que seus seios podiam suportar, mas se alargavam no decorrer de seu corpo. A pele, daquela... daquela cor.

Agora sabemos porque aquele senhor não se desgrudava do balcão. E ele proseava. Peguei o assunto no meio:

- Morava ali, depois da estação, que ia para Vassouras. – disse ele.

A moça (sei o nome dela, pois está escrito no jaleco, mas não vou revelar aqui), não sabia muito da estação. Mas se a descrevi, devo descrever o senhor. O que tinha de cabelo rodeava sua cabeça. A paz saía de seus olhos, de seu rosto bem barbeado. Batia no meu ombro, trajava calça e camisa sociais, de cores discretas. Uma boina lhe dava uma peculiaridade. Mas percebi isso tudo somente quando ele se afastou do balcão, sem, todavia, terminar o assunto.

- Então, ali na estação que eu trabalhava, conhecia muita gente. Gente da época de seu pai.  - O “ali”, era Miguel Pereira, cidade das rosas, estado do Rio. Ao que a moça comenta:

- Eu gosto de lá, mas é uma pena porque não tem muita opção de emprego. Aí eu tenho que trabalhar aqui.

Afastou-se do balcão, tirou a boina. Era para eu falar que estava comprando isso e aquilo, era minha vez. Entretanto, percebi que eu esperava a continuação da conversa. Instalou-se um silêncio e inércia. Ameacei dizer o que pedira, mas o senhor lançava sua cartada:

- Você deve conhecer o Venceslau.
[“Venceslau”, ali percebi que o nome daria uma boa crônica]

Pela cara dela era óbvio que não conhecia o Venceslau, talvez o Brás, da República Velha, então nova na época. Só que a cara dela era de total desconhecimento, ao que a resposta foi, naturalmente:

- Não, não conheço não – e se virou para mim – um Multigripe e um Nasradim, só isso?

Demorei a perceber, mas respondi: “sim, só isso”, e estiquei o braço com o dinheiro. Mas o senhor ainda tinha alguns fatores para memorar a moça.

- Venceslau, não lembra? Bebia uma cachaça. Na verdade ele comia cachaça, porque quando bebia estava tudo bem, mas quando comia...

Eu entendi, creio. Mas a moça ficou interrogativa.

- Mais alguma coisa?

-Não, obrigado.

E que saberemos do Venceslau? Ou Wenceslau, com "W"?

Petrópolis, 7 de junho de 2014





sábado, 8 de fevereiro de 2014

INTERDITO (folhas perdidas de Cervantes)



As oito patas, quatro de Rocinante, quatro de Ruço, estavam naturalmente desarmonicas. As do magro cavalo dava uma batida tlec... tlec... tlec, ao (com) passo que as do muar era tlec tlec tlec tlec. Um sol que somente o andaluz estava acostumado, apesar de esparasas nuvens na descida do horizonte.
- Senhor...

- Diga, Sancho filho, finalmente alguma manifestação para quebrarmos o silêncio desta toada quase infinda.

- Creio que vossa mercê não pode passar daqui.

- Como ousa a estabelecer minhas idas e vindas, meu afã pelas aventuras e desventuras em busca de algo que me é real: o achamento da mais formosa Dulcineia de Tomboso, a mais bela criatura que a terra pode testemunhar! Por acaso está trocando de cérebro com seu asno?

- Não se exaltes, ó dignitário amo, senhor de minhas razões de viver, o mais corajoso e sensato cavaleiro. O Cavaleiro da Triste Figura, o Cavaleiro dos Leões e da Literatura Mundial. Mas...

- Ora, Sancho amigo, ofereço minhas escusas por ter excedido os limites do bom colóquio. Compreenda, por favor, deve ser o sol. Continue, pois.

- Veja esta placa á sua direita. Parece que é sua exata caricatura, e a faixa vermelha sobre ela, significa que está à sua direita. E sei o porquê: um dos gigantes está mais para lá. embora pareça adormecido, é sempre um risco, não é, senhor?

Quixote, que já havia observado o moinho mas não a placa, solta uma baforada de riso, emblema um semblante de compaixão ante à ingenuidade de Sancho.

- Sancho Pança, meu fidelíssimo escudeiro, cuja sagacidade e dedicação ao dever jamais duvidei. Sancho meu amigo, tal símbolo em forma de placa é apenas o retrato do medo que se assolou em nossas terras após minhas desventuras e mentiras sobre minha determinação.  Aquilo não passa de um moinho, estático e por ora inativo, ao que meus olhos ofuscados podem observar. São fantasias de nossos inimigos que cismam em nos ludibriar. Sigamos! Adiante!

- Senhor, estes raios, este calor estão lhe trazendo uma razão preocupante.

- Shhhh, silêncio, vamos passando. Sem ruídos o moinho não perceberá nossa presença.

E Sancho, num alívio quanto à sanidade sabia de seu amo ter voltado, concorda em silêncio.

- Sim, insigne cavaleiro, caminhemos sem alardes no momento.

Petrópolis, 8 de fevereiro de 2014.

sexta-feira, 3 de janeiro de 2014

CSI: CORRÊAS


Mainha falou: 
- Thiago, vai comprar as coisas desta lista aqui lá no supermercado.
Estava vendo um jogo de rugby em VT com meu pai. Olhei para ele e ele, sem falar nada, falou " Fazer o quê, sua mãe falou, é ordem". 

Por uma inassociável obra do acaso, não víamos nossas séries preferidas: CSI, Criminal Minds, Mentalist, NCIS, Law & Order e filmes do Steve(n) Seagal. Todas que exigem muito raciocínio, principlamente as obras do último supra citado. Muito menos lia Padre Brown, de Chesterton; Maigret, de Georges Simenon; Poirot, da Agatha; e Sherlock e Watson, do Sir Arthur (estes permanecem na mesa de cabeceira).
Fui para meu quarto pôr uma camiseta qualquer e calçar o tênis. Sentei-me na cama e percebi um líquido estranho enquanto punha uma das meias. Estranho. A mancha vinha da porta, em jato diagonal. Entretanto, havia uma robusta poça deste líquido na área da dita mancha; vários respingos ao redor. Pelos brancos, pretos e cinzas no chão. Muito estranho.
(fade-out) 

[Música do The Who, um minuto de intervalo, comerciais. Volta a cena. Uma sirene, uma buzinada e uns latidos]

"Urina", confirmei após sentir os odores. Isolei a área e imaginei as ações dos suspeitos. Seis: Quatro terriers brasileiros - Miúda, Xuxo, Gilmar e a vistante Gilda, mais a poodle Maria Augusta - e eu, que tinha um álibi - estava vendo TV na hora do crime e era o investigador. 

O autor, ou os autores do crime estavam entre nós. A porta estava aberta, sem sinais de arrobamento. Nada avariada, não houve luta ou resistência da vítima. 

Alguns dos suspeitos apareceram à porta do local do crime apresentando inocência em seus semblantes. Coletei amostras de DNA. Gilda e Gilmar refutaram em ceder, mas, sagaz como sou, deixei-os me lamber e consegui o que queria. Adquiri as digitais nas pegadas deles pelo local. Enviei tudo para o Laboratório de Corrêas. 
[música desconhecida e de boa qualidade enquanto faziam os testes e reconhecimentos]
Dois DNAs reconhecidos no material: um de macho e outro de fêmea. Chamei-os para a sala de interrogatório. A todos comecei com a frase: "Já falei para vocês não fazerem xixi dentro de casa!" 

Maria Augusta aka Fifi









Maria Augusta, a poodle: Me olhou sobre a franja e apresentou seu olho doente, querendo apenas brincar. Velhinha, não vê e nem ouve bem senão quando capta presença de frutas. Sua idade autoriza várias atitudes dentro de casa, mas não a do crime. Sem digitais na área do crime.

Miúda aka Fiúza


 Miúda: Me lambeu, pediu carinho e correu para o terreiro fazer suas necessidades. Alegava fome também. Falou: Aff! e saiu tipo princesa "Quem sou eu para me submeter a este tipo de inquérito?" Se tivesse um cigarro, baforava no ambiente e o enchia de sua empáfia.






Gilmar: Veio todo feliz e palrador, rosnando vontades de se comunicar. Cheirou o local, cheiros cantos da mesa e cadeira. Acha-se malandro. Após pedir carinho, se empolgou e deixou um filete de urina. Olhar suspeito.
Gilmar aka Cachorro-Gil












Gilda
Gilda: Veio de repente, percebeu que era uma coisa que ela não estava acostumada e quis logo urinar em paz. (No photo filed yet). Falava demais, e não largava suas jóias.






Xuxo:Veio cabisbaixo, todo humilde, demonstrando traumas ininteligíveis em seu olhar. Queria continuar ali. Olhava todos. Estranho.


Xuxo











Chegaram as amostras. Eliminei-as, pois já sabia que tudo isso se tratava de um caso de amor mal 
resolvido. 

Gilda entrou no meu quarto e ali, sentindo cheiro de outros cachorros, urinou. Gilmar, em veemente perseguição, foi ali marcar aquele que acha seu território. Tudo em questão de segundos. Todos os dois com os olhares mais afetivos que podemos ver. Ninguém falou: "quero um advogado".
Dei-lhes voz de prisão, e todos vieram em minha direção cheios de carinho: lambendo, latindo, já se encostando, deitando em meu colo.  Mas dei meu esporro. 
- Nunca mais façam isso, gente. 
Aí mainha chegou de novo:
- Já voltou , meu filho? Cadê as compras?
E fui para a missão. 
Petrópolis, 3 de janeiro de 2014



quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

CATA LIXO


Veio um ventinho esquisito no fim de uma tarde de verão. Resolvi por uma blusa de manga comprida, mas mantive a bermuda. Partiu supermercado!

O lixeiro não havia passado. Os sacos estavam revirados; rasgados pelos cachorros e meticulosamente abertos pelos seres humanos. Em frente a uma das escolas de minha vizinhança um tipo de lixo, infelizmente comum, que poderia reciclar mentes: livros. Junto de armários e estantes quebradas ou velhas, livros.

Uma rápida olhada, uma titubeada, uma olhadela nos títulos. Mansfield Park, Jane Austen; um sobre Emily Dickinson, dois de autores que não os conhecia, um da Pearl S. Buck em inglês. Encartes e capas da enciclopédia Conhecer e dois atlas também em encartes. Foi o que vi por alto até afastar um e outro volume e achar A História da Filosofia, de Will Durant.

Este exemplar, junto com O Mundo de Sofia e a República, de Platão, me levaram a gostar de Filosofia e a salvar-me da decepção que tive no primeiro período da faculdade quando meu então professor, uma lástima, não me fez saber do deleite que era a Filosofia. Uma reprovação em sua matéria (por não ter respondido corretamente o “Dasein” de Heidegger) foi fundamental para que, no semestre seguinte de 1996 pudesse gostar de Filosofia por causa dessas indicações.

E ali, no chão, na calçada, entre uma moita de coroa-de-cristo, (Euphorbia milii), um livro que foi importante para mim e haveria de ser para outrem. Peguei-o e o levei comigo para as compras pensando em quem poderei presentear com ele. E, se algum curioso ficasse mirando o livro em minhas mãos, este seria o escolhido para levá-lo, com a seguinte dedicatória: “Caro(a) desconhecido(a) (nome dele ou dela), aqui vai um presente do acaso. Feliz 2014.” Data e meu nome.
Esta  a edição achada


Somente um mendigo da praça me olhou e pediu o cigarro que portava. Entreguei-lho.

Fiz as compras e esperava que a moça da caixa registradora tivesse alguma curiosidade sobre o livro, ainda que pensasse se tratar de um produto do estabelecimento. Se ela fizesse isso levaria o livro. Não o fez. Guardei-o junto com o saco de pães e voltei para a casa. Talvez pegasse mais um livro daquela fonte. A alguns metros via um homem, aparentemente com seus 45 anos, agachado, com uma camisa que simulava um time de futebol americano, número 89. Aproximei-me e falei:

- Que triste maravilha, não?
Ele virou o pescoço e disse:
- Cara, olha só. Não pude deixar de pagar alguns. Veja, um em francês. Minha sogra lê francês.
- Eu peguei este aqui. Embora já o tenha lido não poso deixar esta edição aqui.
- Este também li, há muito tempo. Olha esse aqui, cara. Um livro do Museu Imperial, altas fotos. – Levantou-se. Seguíamos para mesma direção.

Paramos e folheamos o do livro de fotos do museu. Depois, andando, ele começou a comentar:
- No último edifício que morei, no Jardim Botânico, aumentei minha biblioteca com muitas raridades.
- Cara, isso é comum, sempre havia centenas de livros incríveis na lixeira do prédio onde minha avó morava, em Copa.
- Ih, lá é um paraíso. E de discos também. Uma vez achei uma coleção inteira de Monteiro Lobato. Leio para minha filha de 6 anos.
- E minha tia que tem toda a Comédia Humana de Balzac adquirida num “desmanche” desses. Sempre estes “velhos” livros são bons, inclusive os científicos.
- Pois é. Eu sou biólogo, e uma vez achei muitos livros do início do século passado. Aí meu filho de 21 anos disse “para que isso pai, as coisas já mudaram”. Mas justamente por isso, falei para ele, é importante vermos a evolução das coisas, das ideias, das experiências e tal. Além de percebemos que usamos algumas coisas ainda do século XVIII.

Depois de alguns segundos e metros, ele falou, com uma voz lamentosa.
- Livros no lixo...
- É constrangedor. – Complementei.
- E quais argumentos poderemos utilizar para defender um país que ainda joga livro no lixo.
- Moro aqui. - Cheguei ao portão de minha casa. Apresentamos nossos nomes e ele mostrou onde mora. Logo ali.
- Abração.
Petrópolis, 18 de dezembro de 2013.