VÃO (EM) POESIA
Por alguma beleza estavam juntos, não
sabem se forçados, se por experiência, por aventura, por idiotice... mas por
beleza sim. Por amor, não, quem sabe em um deles, por átimos esparsos durante
sei lá quanto tempo. E por quanto tempo estavam naquele quarto? Um dia e meio,
quase dois?
Ele a desabraçou cuidadosamente quando
acordou, queria ir ao banheiro. No silêncio possível, levantou-se da cama,
desistiu dos chinelos, apesar do chão frio; foi até à porta do quarto e a abriu
numa lentidão de sorrateira, do mesmo modo a fechou. No banheiro, acendeu a
luz; evitou que o jato atingisse a água da privada. Lavou as mãos, bochechou
com um produto especial, bebeu água da torneira, rapidamente. Tossiu. Os pés
ficaram mais gelados e sujos apesar do carpete marrom e demasiado empoeirado.
Pensou em pegar um copo d’água para ela. Na cozinha, pegou uma garrafa, levou
um copo. Ainda tinha meia garrafa de vinho. Não aguentou nem olhar. O vizinho
ouvia um rock progressivo.
Retornando ao quarto, no mesmo processo
silencioso, ele a viu dormindo, na mesma posição que a deixara. Fechou a porta
e foi por instinto, no breu, até à beira da cama. Deixou a garrafa no chão, o
copo ao lado da luminária. Pensou em se deitar, mas apenas se sentou à beira da
cama. O breu se enfraquecia com a fraca luz azul clara que vinha das frinchas
das venezianas; um azul que deflagrava um fim de tarde nublado e mais frio que
o dia anterior, ou o mesmo dia só que manhã. Ele gostou daquele cenário, daria
um bom curta-metragem, baseado em algum conto de Cortázar, sacado do “Jogo de
Amarelinha”. Ou de uma poesia de, de... Droga, ele não sabia bem dos bons
poetas apesar de amar alguns poemas de Drummond, Rimbaud, etc. Em um lapso de
comédia, originado por suas incertezas mais absurdas ou incoerentes, poderia
pensar que aquilo ali tudo seria de Dante ou Edgar Allan Poe. Pensou nos textos
que tinha que escrever para a semana seguinte. Tateou cigarro e isqueiro na
mesa de cabeceira, sujou suas mãos no cinzeiro que havia levado para lá e não
se lembrara. Bateu seus dedos na perna, pegou um cigarro e acendeu. O maço
estava em cima de uma edição de “A Servidão Humana”, de Somerset Maugham.
Curvou encostando os cotovelos próximos aos joelhos. Luzes e estalos da brasa e
cheiro da fumaça pode tê-la acordado.
Ela se vira com um delicioso e ingênuo
gemido. Ainda com muito sono, sussurra que quer um trago. Ele a espera se
sentar na cama, com as costas apoiadas na parede. Também queria água e pediu
para que ele buscasse.
- Já peguei, está aqui.
- Ah, que bonitinho.
Deu uma tragada. Ele lhe entregou o copo e
pegou o cigarro de volta. Ela bebeu quase todo o conteúdo e lhe ofereceu:
- Quer?
- Não, já bebi.
- Você não bebe quase nada de água.
Bebe, garoto!
- Já bebi... tá bom.
E bebeu o resto. Perguntou-lhe.
- Quer mais?
E respondeu, em negação, só com dois
secos sons guturais. Pediu mais um trago com as mãos. Um minuto de silêncio.
- Que horas são? - Ela pergunta
esperando uma hora inacreditável.
Ele pega o celular:
- Cinco e meia.
- Da manhã?
- Da tarde, acho que de sexta-feira já.
- Caramba, tenho que me encontrar com
minha mãe. – Devolve o cigarro e volta a cochilar.
Bateu nele um receio de falar o que
pensava. Passara de uns tempos até ali com estes receios. Falou que aquela cena
seria um bom curta-metragem, ou um conto. Um riso seco e sonolento foi a
resposta. Decidiu que não escreveria sobre aquilo senão no estilo de Charles
Bukowski. “Não, melhor não”, refletiu. “Sim, claro que posso escrever sobre
isso! Um escritor há de correr seus riscos com a exposição de todo seu pensar
no papel, linha sobre linha. Escrevo sobre o que eu quiser e este é o risco de
nossa arte!”. Refletiu novamente, não sabe se pior ou melhor. O cigarro acabou
e amassou-o no cinzeiro.
Deitou-se, cobriu-se. Pôs o braço sobre
a nuca dela. Ela se aproximou, pediu cafuné para lhe ajudar a dormir. “A
dormir?”, ele pensou em revolta. O sabiá cantava forte não muito distante. Isso
a irritava e, não obstante, ele a amava.
Itaipava, 25 de
agosto de 2013.
"Então você quer ser um escritor
ResponderExcluirse não vir estourando de você
apesar de tudo,
não escreva."
O velho sabia das coisas.
E você tem as manhas!
(o gemido que ela dá logo pela manhã é mesmo delicioso.)
Valeu, cumpádi! Muito bom, como sempre.
Eu te leria todo dia! E você sabe muito bem disso!
ResponderExcluirA poesia estava nos sussurros, gemidos inocentes!
ResponderExcluir"Um escritor há de correr seus riscos com a exposição de todo seu pensar no papel, linha sobre linha. Escrevo sobre o que eu quiser e este é o risco de nossa arte!"
ResponderExcluirÓtimo texto, Peste, como sempre!
O seu texto une tantas referências e ultrapassa cada uma delas. Esse conto poderia ser transposto para o cinema em alguma obra do Antonioni...Genial, como sempre!
ResponderExcluirTaí, Antonioni... O Eclipse.
ResponderExcluirLindo, Thiago! Arrasou, pra variar.
ResponderExcluirFui lendo e imaginando as cenas com uma facilidade na minha mente, ouvi até o sabiá!
ResponderExcluirrs
Abraços
A poesia estava nos sussurros e no silêncio do amor. Antonioni, amor e silêncio...
ResponderExcluirSuas palavras sempre me encantam!