Ali nas cercanias do campo de
futebol de Seu Ataíde vive Abelardo, o Muar do Sertão. O Pessoal, depois das
partidas, não rejeita churrasco de bode e cerveja; pingas e o que demais houver
para repor energias. O córrego perene salva a sede de todos.
Abelardo, o Muar do Sertão,
sempre quieto, ouve mais do que fala, mas quando fala, fala bem, às vezes nem
tão bonito, porque fala a verdade que vê. Vê tudo, mas engana o Pessoal
fingindo que não vê. Abelardo, o Muar do Sertão, gosta dos humanos, mas tem vez
que não aguenta tanta... humanice.
E lá estava Abelardo, anda solto
porque ninguém o há de amarrar senão quando assim deseja, quando vai para a
venda encher seu caçuá de palma e feijão de corda. Sempre cumprimenta Valdemá,
O Carcará e Calango Jango, que nada tem a ver com o Goulart. De vez em quando
tem papo entre eles, que a gente pode até registrar aqui um dia desses.
E foi num dia desses que
Abelardo, ouvindo o Pessoal contar umas humanadas (que na nossa visão seriam
besteiras), percebeu um movimento esquisito no icó que fica do lado esquerdo do
campo, perto da bandeirinha de escanteio. Bicho branco e ágil, destacava-se do
chão rachado e ocre. Não era Calango Jango. O bichinho passou pelo Pessoal,
pegou uma migalha de alguma coisa e correu; e subiu o umbuzeiro. Abelardo olhou
cabreiro para aquele alienígena, que com suas patinhas velozes e respiração
apressada, chamava pela presença do muar. Ao se aproximar, ouviu-se um falsete:
- Abelardo, O Muar do Sertão! É
você?
- Oxente, quem és tu,
cramunhãozinho, para me conhecer?
- Jovelino, o Esquilo Albino. O
senhor é famoso aqui e por aí tudo. Aquele que resolve qualquer problema.
- Bom, já vejo que não alucino.
Só que nada sou orgulhoso, tampouco cego, surdo e mudo. Desembuche, não tema.
Te escuto.
- Só um minuto, estou arfante. Já
sigo adiante.
- Tem mais de hora, recupere-se
da corrida e do tranco.
- Muito embora eu seja um
esquilo, percebe que sou branco, coisa que não devia ser. Mas assim nasci,
fazer o quê?
- Ora, ora, e em quê que isso lhe
aporrinha?
- Nenhuma esquila me quer, essas
coisas de não aceitar os diferentes. E só me sobram as ratinhas, branquinhas,
que moram no laboratório. Mas nem a elas posso amar.
- Antes lá que num sanatório,
aonde nos leva, de quando em quando, um amor ardente. E o que lhe impede de a
elas namorar?
- Eu as paquerava à distância,
jogávamos charminhos. Até que um dia que resolvi abrir caminho e sentir a
fragrância, como um olor de açucena. Porém, seu Abelardo, chegando às janelas,
que fardo, que pena, judiaram delas. Bisturi e seringas, tudo ali vira
experiência. Não posso com isso não.
- Aí que vem a paciência. Esperar
que uma esquila morena não seja racista, tenha inteligência e a ela falte
ignorância para perceber que aí em teu peito, seu menino, há muito amor.
- Nobre sofrer, de todo o
batalhador. Jovelino, o Esquilo Albino, não perca a esperança, é o que posso
lhe dizer. Insista.
- Assim seja. Vou eu, então, por
aí, Seu Abelardo, o Muar do Sertão. Obrigado de coração, deste que ainda bate
forte por uma esquila serena. Quem sabe ainda não exala a açucena? Até mais
ver.
- Peleja plena é essa coisa de
vida. Até.
Itaipava, 21 de outubro
de 2012.
Ah, este olor das açucenas...!
ResponderExcluir"Pelejaplena é essa coisa de vida" - transcendental como o Abelardo Muar do Sertão - esse conto pega a gente no coração - Nelsinea
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